segunda-feira, 15 de abril de 2013

Das formigas e das cigarras

Eu tenho uma avó que me contava uma estória sobre as formigas e uma cigarra. Eu lembro de gostar de ouvir a estória porque adoro ouvir estórias, mas sempre fiquei triste com essa estória... Sempre a achei injusta. Não vou contar com detalhes, mas, resumindo, era uma cigarra que cantava ao invés de guardar comida para o inverno enquanto que as formigas o faziam. Quando o inverno chega, a cigarra vai até o formigueiro, mas as formigas a deixam do lado de fora e dizem "quem mandou ficar cantando ao invés de 'trabalhar'?". No fim, a cigarra morre e a vida continua...

Essa estória sempre me entristeceu porque eu adoro cigarras. Passei a segunda metade da minha infância numa cidade pequena de interior que tinha verões bons e, com eles, muita cantoria de cigarras - e cigarras também! Adorava ouvir aquela gritaria no fim de tarde junto com um calor delicioso que me animava e conduzia minhas peladas de "fut" com ou sem amigos. As vezes chutava na parede como se fosse o gol, deixava a bola rebater e vir na minha direção e, de atacante, imediatamente me tornava o goleiro adversário que fazia defesas brilhantes! Nesse tempo eu não tinha medo de cair...

A torcida de cigarras vibrava! O juiz até apitava o inicio e fim de partida.

Quando a estação começava a virar, lembro da cantoria das cigarras ser mais forte, parecer mais grave - um tanto desesperada, talvez. Mas, isso não me entristecia; as bichinhas continuavam a me alegrar. Nos dias que viriam, eu me meus amigos de colégio corríamos depois da aula até as árvores que tinham por perto para caçar "cascas de cigarra". Elas morrem e deixam a armadura de um mês de batalhas à mostra para os arqueólogos juvenis. Levava aqueles corpos para casa, brincava com eles, dissecava sua estrutura, ficava impressionado com aquelas pequenas "garras". O inverno chegava e eu lembrava que elas morriam. Isso também não me entristecia, porque no verão seguinte não teria perigo de elas não aparecerem.

A estória era muito injusta! As formigas, sem vergonha, nunca cantaram comigo e, se eu tentasse me relacionar com elas, seria picado. Pior! Elas roubavam minha despensa e comiam meus chocolates e balas que escondia para minha irmã não roubar de mim na eterna disputa de nossas máfias ou inteligências governamentais - eu era meio KGB e ela meio CIA.

Agora, falando menos infantil e mais "sério", tem algo mais profundo que me incomoda na estória: ela serve para ensinar que na Natureza é natural que aquele que trabalha vence e o que não, morre. Ela serve para dizer que é "por isso que as formigas vivem muito e as cigarras pouco". Logo, com os humanos deve funcionar do mesmo jeito, pois é uma lei "Natural" ou "Universal". O que acontece, na verdade, é o contrário: humanizamos as formigas e as cigarras para justificar uma lei moral que inventamos para nós mesmos e para nossos filhos - talvez para a preservação deles: aquele que for mais malandro ganha. Ou então, quando alguém estiver feliz com a vida e deixar alguma sobra, tome-a o quanto antes e guarde. Azar o dele; quem mandou?

Deixem-me contar uma coisa: as cigarras podem viver até 20 anos, sabia? Depois de adultas e de se reproduzir, vivem uns 50 dias ou mais, mas, contando toda sua vida, podem chegar a 20 anos. Sabe quanto dura essa formiguinha que vai até tua cozinha e acaba com tuas coisas? 3 a 10 semanas. Na estória, é a mesma cigarra e a mesma formiga que se encontram no verão e no inverno, mas poderia ser qualquer outra coisa: dois meninos - um rico e um pobre -,  uma zebra e um leão, um bule e uma xícara, uma bola e uma estaca. Mas, nenhuma dessas coisas se encontra para conversar, nem são as mesmas. A formiga da estória deveria ser outra, que nem sabe quem é cigarra.  E a cigarra, já deveria ter morrido, pois já teria cumprido seu ciclo de vida.

Aliás, ciclo de vida: viver da maneira que tua espécie encontrou para viver. Cigarras trabalham cantando, formigas roubando despensas. E o que dizemos? Cigarras não trabalham, formigas sabem se "preparar para a vida". O que ensinamos para nossas crianças? É da Natureza saber roubar e trabalhar dessa maneira enquanto outro deixar espaço para você. "Seja mais esperto". O que ensinamos? O valor da vida é fazer o que for preciso para acumular mais...

Mas, quando uma formiga entra na tua casa, imediatamente você a mata. Vai roubar a minha, safada? Vai roubar da cigarra! Cigarras vivem mais do que formigas se compararmos o tempo de vida de cada uma; a estória estaria furada. Mas, ninguém vive mais ou menos, vivem de acordo com suas adaptações. Se há uma "lei" a ser tirada é: não existe regra, escolha uma quando possível e a siga. Porém, não se justifique pela Natureza para querer roubar dizendo que está se "precavendo para o inverno". Se tem uma coisa que aprendi assistindo "The Game of Thrones" é que em nome de se precaver do Inverno que está chegando as pessoas fazem muitas coisas - e coisas extremamente perigosas...

Odeio formigas, adoro as cigarras...

Entendo que quando a Bíblia diz para o preguiçoso aprender com a formiga, foi para aprender que é possível carregar um peso maior do que seu corpo - não que é para deixar de cantar e começar a roubar! Assim como quando vejo Jesus dando uma bronca em Marta é: tem uma cigarra aqui cantando e você está preocupada com o trabalho das formigas? Calma, aprecie todos os trabalhos! Saiba viver...

Para mim, isso é como o caso do político: queremos matá-los, mas, ao mesmo tempo, queremos ser como eles: trabalhar pouco, ganhar muito, viver de férias.

No fundo, se tem algo de Natural, esse algo é viver - não tem opção quanto a isso. Amo as cigarras! Tenho saudade daquela vida de caçar suas armaduras, de ouvir sua cantoria, de tê-las como minha torcida. Não as tenho mais. Porém, hoje tenho outras cigarras, ouço outras cantorias, tenho outras torcidas, sou contente, carrego pesos maiores do que eu como fazem as formigas, mas, além disso, canto e sou cigarra para outras crianças que jogam bola no quintal em verões de cidades de interior...

Chorei de saudade escrevendo este texto.




Gratis i Kristus

terça-feira, 2 de abril de 2013

Espiritualidade


É o ar, é o vento. Disse Jesus que o Espírito sopra onde quer, ninguém pode mandá-lo para lá ou para cá; apenas sopra. Perguntar “o que é espiritualidade?” é um exercício sem sentido – é uma palavra sem boca, sem pé, sem rosto, sem destino, sem determinação –; o significado se dá apenas na experiência com o Espírito, quando ele se revela, se manifesta. Aquilo que se refere ao Espírito se refere apenas enquanto ele sopra, enquanto se nota que o vento sopra.

Quando falamos de “espiritualidade”, talvez por não a “vermos”, imaginamos algo que está dentro de alguém, partindo de alguém, uma experiência individual, confinada em uma ou outra pessoa que são sensíveis ao espírito, a algo místico. Porém, vento não sopra trancafiado dentro de uma casa, fechado num pote, escravo de uma pessoa, dentro de um só coração. Espírito é vento, sopra onde quer, passa entre as casas, corre as ruas, faz bandeiras balançarem, refresca muitos ao mesmo tempo, não só um.

Comunidades se reúnem e desfrutam do mesmo ar, partilham o mesmo vento. Desconhecidos que se encontram trazem consigo novos ares. O movimento de corpos agita o ar. Creio que espiritualidade não esteja lá ou aqui, mas entre relações. Relações não tem lugar, tem experiências. A experiência com o Espírito não é propriedade do pai, da mãe, da criança, do pastor, do arquiteto, do músico, do ancião, do jovem ou de alguém, mas da Igreja, ou seja, do que acontece entre os membros, entre pessoas, entre casas, entre corações.

O pertencimento à Igreja não é o confinamento do Espírito em quatro paredes – pois então o vento não sopraria, seria tudo, menos Espírito. Relações que são tocadas pelo mesmo Espírito são Igreja, não as paredes aonde nos encontramos. Para que nosso vento não morra, para que o Espírito não deixe de soprar, não podemos nos fechar em quatro paredes, porém, não podemos também parar de nos encontrarmos. Precisamos de um encontro, de um lugar/momento que propicie relações. Precisamos ser Igreja, participar da Igreja. Espiritualidade é a experiência viva da Igreja de Jesus Cristo.

A série de metáforas e silêncios, cantos e celebrações, descrições das experiências vividas e testemunhos, choro e luto, podem ser expressões da espiritualidade, podem ser filhas de relações que trazem esperança, renovo, nova vida, a Fé. Como disse João, se pregam o Jesus ressurreto que vive em nós – está entre nós –, são do Espírito de Cristo, apresentam a eternidade. É a experiência de Cristo em nossas relações que nos consola e reanima, traz um novo ar, um sopro, um vento que movimenta e refresca a esperança que podemos chamar de espiritualidade: aquilo que é experimentado do Espírito...




Gratis i Kristus