quinta-feira, 17 de junho de 2010

Admirável Deus Novo

"- Mas se os senhores não ignoram Deus, por que não falam Nele? - perguntou o Selvagem, indignado. - Porque não permitem a leitura desses livros sobre Deus?
- Pela mesma razão por que não apresentamos Otelo: eles são antigos. Tratam de Deus tal qual era a centenas de anos, não de Deus como é agora.
- Mas Deus não muda!
- Acontece que os homens mudam.
- Que diferença faz?
- Um mundo de diferenças..."

Este trecho tirei a uns meses (talvez ano) atrás. É de um livro antigo, de Huxley, "Admirável Mundo Novo". Na "cena", um homem que vivia fora da civilização "super-moderna" conversa com um dos líderes desta civilização. Nos tempos futuros descritos e imaginados por Huxley, não existem mais doenças, nem reprodução sexuada, velhice e desordem social, tudo é controlado. Ninguém se entristece (ou quer se entristecer), e em contra partida ninguém sonha (ou conhece o que é sonhar). Eu acho brilhante esta ficção em que Deus ainda existe, mas ninguém imagina sua existência. O "fim de Deus" acontece com o fim da necessidade, ou melhor, dos desejos humanos. Sem desejos das criaturas não há necessidade do Criador:

"- Então o senhor acha que Deus não existe?
- Ao contrário, penso que muito provavelmente existe... Mas ele se manifesta de modo diferente a homens diferentes. Nos tempos pré-modernos, manifestava-se como descrito nesses livros. Agora...
- Como ele se manifesta agora? - perguntou o Selvagem.
- Bem, ele se manifesta como uma ausência; como se absolutamente não existisse."

Para um bom religioso talvez essas imagens assustem, para um fiel elas encantam. De fato, se Deus se relaciona como um assistencialista que tem por responsabilidade e preocupação atender aos desejos humanos, com o fim dos desejos ocorre o fim de Deus. Se as nossas petições e orações são uma relação de troca ou de crédito, com o fim dos desejos há o fim de Deus. Se é assim que funciona a coisa, talvez por isso é que Deus não responde a todas as orações, para que sua "função" não se torne obsoleta. Talvez a ciência seja inimiga de Deus. Mas, graças a Deus, não é assim que a coisa funciona.

A necessidade de milagres e realizações de desejos aponta para uma fé fraca, uma distância de Deus. Como isso? Bem, se Deus é o Todo-Poderoso e que a tudo enche, quanto mais próximo Dele, menor deveriam ser as necessidades. Aliás, menor os desejos. Por que? Não porque Deus realiza os desejos antes de serem pedidos (já que não é nem vidente e nem gênio da lâmpada, é Deus), mas porque quanto mais próximo Dele mais perceptível é a necessidade de apenas uma coisa: Deus. Só tua graça me basta. A relação com Deus não é em troca de desejos atendidos, mas do único desejo que faz sentido, o "desejo de necessitar de Deus". Não necessitar que opere milagres, mas a necessidade de que a vida só tem significado e só gera mais vida se for em parceria com Ele. Fomos feitos "Nele, por Ele e para Ele". A minha motivação para viver é Deus, é Ele, seu amor. A graça que me basta. Agora, quem vive sou eu, somos nós. A nossa paz, nossa segurança, nosso norte, nosso caminho, nossa verdade e nossa vida é Ele, mas quem vive somos nós. O incentivar a vida, eliminar e erradicar doenças, planejar famílias, acabar com a fome, desordem social, indiferença e desigualdade é nossa vida, nossa "função". Tentar se aproximar disto é tentar se aproximar do que é o Reino de Deus, é buscar o Reino de Deus. Entretanto, para isto é necessário rever quem é Deus para nós, aliás, quem somos nós, já que Deus não muda, mas o homem sim, e isto faz um "mundo de diferenças".

Portanto, façamos um mundo diferente. Façamos homens diferentes. Transformemos a nós para nos relacionarmos com Ele. Deus não morre, Deus não some, mas o homem matou e hoje esconde quem é Deus.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Pecar é humano

Para quase todos os homens "errar é humano". Quase todos. Para os religiosos ser humano é ser errado. Interessante esta sentença, já que é a negação de sí mesma. Um homem que rejeita sua humanidade, vai entender?! Uma crise existencial adolescente em um religioso, independente de idade. Não quer aceitar o que é, almejando, ao contrário, ser outro ou até mesmo aquilo que não é, nunca será ou jamais poderia ser. Excesso de confusão. Tudo porque crê que errar é proibido, pecar é ultrajante e esta parte do ser humano irrita a Deus, ou incita sua ira. Uma percepção de ação e reação divina frente a vida de sua criação. Mais interessante ainda é que na religião a qual sempre me refiro (cristã), a "salvação" ou perdão divino não é meritório, mas baseado na Graça. Deus dá a quem dá por amor e não por "méritos ou obras".

Essa negação ou rejeição pelo humano, pelo erro, muito bem expresso naquele velho ditado, é invejar o divino, e não se relacionar com Ele. Julgar e castigar o pecado em nome de Deus é na verdade querer ser igual a Deus, tradicionalmente pecado ligado à um tal de Lúcifer (que não conheço). Exigir do homem ser perfeito é o mesmo que pedir para "as pedras falarem". O humano não é ruim, se firmar no humano é que mata. Errar faz parte do ser humano, é consequência de ser natureza criada. Ser perfeito o tornaria Deus (Criador) e não mais humano (criatura). Agora, se firmar, confiar e tentar gerar vida enraizado no homem não cria, mata. Se pecado for aquilo que atenta contra a vida, pecadores (que vez por outra geram morte) não podem por sí só querer ter vida, é necessário que sejam auxiliados por algo ou alguém que nunca pecou, no caso cristão, Cristo. O Deus encarnado que gera a vida, e vida eterna. Não peca ou não pecou.

Toda essa "filosofada" para pender e compreender uma afirmação: "pecar é humano, mas satânico perseverar nele". Kierkegaard elucida sobre isto. Chama muita atenção a idéia de que carregamos culpas e remorsos por quebrar regras institucionais, denominacionais ou doutrinárias, esperando em resposta o castigo. Pois cremos naquela idéia de que o erro é abominável, quando na verdade o incompreensível é o permanecer no erro. O pecado não seria em sí um ato, mas uma prática. Não seria um instante, mas uma continuidade. O problema é ir contra a consciência que se expande, o problema é não se arrepender, o "t'shuva" hebraico (mudança de caminho), a "metanoiete" grega (transformação de mente). O problema é insistir em pecar consciente, resistir a vida conscientemente.

Shakespeare, em Macbeth, diz: "Coisas mal começadas tornam elas mesmas fortes pelo mal". É uma síntese do pecado. Começar mal incentiva o continuar mal. A beleza de ser "anti-vida" é que a morte nos dá poder, as cócegas do ego humano. Nos empurra a fortalecer-nos em nós mesmos. A fazer o que não deveríamos, criar confiando no que somos e só, repetindo o que disse dois parágrafos atrás, isso mata. Necessitamos de uma parceria divina. O homem perfeito é incompleto. A grande sacada para a caminhada é esta, somos perfeitos ao sermos incompletos. Precisamos agora de um relacionamento com o completo que preencha e superabunde nossa finitude, nossa incompletude. "Onde habitou o pecado superabundou a graça". Não são necessários julgamentos, culpas, castigos ou rejeição da própria existência. O que é necessário é o (re)conhecimento de sí para continuar a caminhada...

terça-feira, 1 de junho de 2010

Paradoxando mais um pouco...

Os medos, a solidão, a pequenês e a indiferença do tempo praticamente nos obrigam a sermos dependentes. Não necessariamente de entorpecentes ou drogas, mas sempre dependentes. Nos sujeitamos ao controle ou poder de algo ou alguém, criamos amuletos, inventamos superstições, construímos um chão que não existe para garantir um tipo de segurança. Viver frente ao incerto, ao indeterminado, ao puro "azar" nos amedronta. Precisamos ser dependentes de alguma coisa que nos deixe firmes, imponentes, "poderosos". William James, filósofo pragmático inglês, diz em seu pragmatismo que ou amor ou esperança ou Deus, são a mesma coisa. Coisas inexistentes que chamamos a vida para sentirmos paz, alívio e segurança. Em suas palavras: "criamos Deus para nos sentirmos bem".

Entretanto, não creio que seja um mérito religioso este de criar dependências. Faz parte do ser humano. Orgulhosos, prepotentes, metidos e sabidões, sempre temos as respostas e as razões. Logo, na falta de uma certeza, frente ao indeterminado, incerto, precisamos criar nossas dependências. Chamemos também de ilusões. Escravizamos a nós mesmos. "Não sou nada sem você", dizemos uns para os outros. Criamos uma dependência escravizante, que ao invés do "amor ao próximo" nos tornar parte de um todo, torna o todo como nosso, nossa posse. Sem esse todo perdemos nossa certeza, nossa potência e, no fundo, nossa dependência. Assim como o "amor a Deus", que se torna uma sequência de atos religiosos, ritos, que "garantem minha boa estadia na terra". Atos religiosos vazios, que não valem nada, são apenas atos, que são desvalorizados a ponto de serem aquilo do que nossa vida depende. Ao invés do que era para ser bom gerar vida, rouba-a.

Iludimo-nos, nos escravizamos, nos infantilizamos e nos forçamos à ignorância. A consciência é uma bênção e uma maldição. Uma vez ciente da verdade, eternamente será incomodado por ela. Querer se livrar dos vícios traz uma realidade bruta: a vida. Por isso é muito mais fácil fechar os olhos para o que há e ser dependente de minhas ilusões. Ocupar os dias e os espaços com bastantes atividades e sons faz bem para afastar a indiferença do tempo e estreitar a relação com as dependências. O problema é refletir sobre a fuga dos vícios. Daí vem o paradoxo que mais tem me incomodado nos últimos tempos, a mensagem que a minha religião prega e seu grande desafio: "ensinar liberdade e independência e ao mesmo tempo responsabilidade com a vida e com o outro."

É incrível como o uso de uma mensagem de libertação, independência, gerou prisões e senzalas religiosas. Mas isso acontece na sociologia, na política, na filosofia e em qualquer outra área da expansão da consciência humana. Idéias, pesquisas, mensagens e projetos que eram para a liberdade, usados contra a independência. O Cristo que conheci ensinava às pessoas a tomarem as rédeas de suas vidas, para que caminhassem com seus próprios passos, tomassem suas decisões não baseados em leis, regras de conduta, amuletos, líderes ou cartilhas, mas por uma consciência de liberdade, consequentemente de amor. Se tem uma definição de amor que eu gosto é do gesto livre que não exige nada em troca, nem a correspondência do outro ou até mesmo o outro. Só há amor entre duas pessoas se estas forem independentes entre si, puderem decidir amar, ou seja, serem livres para quererem o outro simplesmente por si e pelo outro. Se numa relação um destes se aprisionar, já não é amor, e sim dependência. A nossa caminhada deve ser de buscar uma independência e ao mesmo tempo responsabilidade, consciência pelo outro. Precisamos gerar no outro também independência e consciência de responsabilidade.

Desprender do que aprisiona, valorizar o tempo, compreender as relações, ensinar, aprender, não criar certezas mas reconhecer as dúvidas, agir sem esperar recompensas e não iludir ou ser iludido. Se encantar pela vida, pelo que de fato ela é, abre uma bela trilha a se caminhar. Uma trilha interessante, pois não se sabe onde chega o próximo passo, não se tem idéia onde termina ou como termina, mas se sabe que é tomada consciente, concretamente. Não é uma viagem rumo a um lugar especial. Como diz Sören Kierkegaard, a vida é como se estivessemos suspensos no escuro sob um fio em um abismo, não sabemos onde dá o próximo passo ou se no próximo passo ainda haverá fio, não vemos o caminho, mas todos os dias damos um salto de fé. E o mais belo, é que fé não é ilusão, não é sonho, não é certeza, é sim confiança. Não sabemos onde dará, mas continuamos caminhando, confiando que se há uma vida a ser percorrida, que seja por inteiro, intensamente, vivida em abundância. Independentes, passeamos pela vida passo a passo. Nem parados e nem desesperados, mas apreciando e refletindo no passeio.

É um paradoxo. Ser livre e responsável pela vida. Ser independente e responsável pelo outro. Ter esperança e não ilusão. Querer saber tudo para chegar a conclusão de que não se sabe nada. Ter certeza de que temos dúvidas. Depender da vida é criar a morte. Ser independente é aprender a morrer para o que nos prende. "Quem acha a sua vida a perderá, e quem perde a sua vida por minha causa a encontrará".