quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Tatuagem

Farei três tatuagens no fim desse ano. Todas elas representam experiências que vivi e, claro, serão motivo de charme, vaidade e cuidado para mim. São adereços supérfluos e permanentes...

Com amigos sabendo que farei uma tattoo, recebi uma imagem sensacional exibindo o Charlie Sheen e mais ou menos essa inscrição:

"Me perguntam porque não tenho tatuagem. Pergunto, então, se você colocaria um adesivo numa Ferrari."

Claro que ri da sacada do gênio que escreveu isso. Num primeiro momento, porque, no seguinte, tive que parar e pensar: "Como é que é?"

O que está posto na imagem é a regra: "se teu corpo é tão bom quanto uma Ferrari, não coloque um adesivo". Entende a medida? A Ferrari! Ela é o crivo par a qualidade do teu corpo. Na minha enorme cabeça, a resposta mínima e decente deveria ser: "se a Ferrari for tão importante quanto é meu corpo, poria sim um adesivo, mas como não é..." Infelizmente, é difícil fazer essa conta, porque de tão viciados em preços de coisas, não conseguimos imaginar que nosso corpo seja "tão bom quanto uma Ferrari".

É muito estranho: ou pensamos que Charlie Sheen é um arrogante por se comparar a uma Ferrari e não por isso não põe um adesivo em si, ou que somos muito mais arrogantes ao acharmos que somos mais importantes do que uma Ferrari e, exatamente por isso, dignos de termos uma marca e ela não. O problema em tudo isso não é a arrogância ou qual a melhor escolha, mas porque temos de fazer essa escolha. Melhor: porque eu tenho que me comparar a uma Ferrari?

Nunca vi Ferrari comendo. Nunca vi Ferrari desenhando. Nunca vi Ferrari rindo... Já vi Ferrari correndo (nos filmes). Nunca vi Ferrari escrevendo textos, ensinando a jogar bola, brincando com criança, tocando violão, cantando, compondo músicas, dando um beijo, amando, "praticando amor", tomando sol ou pensando se faria ou não uma tatuagem... Será que sou tão bom quanto uma? Pergunta ridícula e sem sentido...

Nunca vi Ferrari sendo religiosa, cumprindo deveres morais, participando de política. Já vi carregando "gente importante" para lá e para cá, mas, além disso... Nada. Infelizmente, de novo, é difícil conceber a preferência pelo nosso corpo ao invés da Ferrari. Porque a Ferrari custa um preço, nosso corpo não.

Na Fé, por exemplo, porque é tão difícil aceitar uma relação que seja graciosa, "de graça", pois tem que ter um "preço". O corpo dado não custa nada, mas 30 moedas de prata podem resolver alguns problemas...

Nessas horas eu entendo como é "inconcebível" a possibilidade de vida eterna: ela não tem preço, não tem começo e nem fim. Não está limitada a um número, por maior que ele seja. Por isso não se cobra por ela (não tem moeda que pague). Por isso ela é rejeitada... Melhor é a outra vida, aquela que custa, que é danosa e infinitamente delimitada: uns podem ter e outros não. Ela não faz nada além de morrer, mas isso só alguns conseguem... Tipo uma Ferrari.








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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Consolo e Esperança

Quando olhamos para a vida e dizemos "nem tudo foi ruim", encontramos consolo. Pelo menos é o que Richard Rorty propôs num debate sobre "consolação". Já quando olhamos para o futuro e desejamos algo diferente, melhor do que aquilo que vivemos, experimentamos esperança. O projeto para amanhã que independe do frio na barriga ou do coçar do coração, do sorriso no rosto ou de uma boa lembrança, chama-se esperança.

Para os dias de tempestade, o consolo é um bom abrigo. Para todos os dias, a esperança tem que ser o ar que respiramos. Consolo é uma possibilidade para suportarmos as dores, as perdas, os dias maus. Já esperança não é possibilidade, mas um dever. Devemos ser esperançosos sempre, podemos nos consolar quando preciso. Diferente do consolo, esperança não é nosso abrigo, mas a coragem que nos obriga a sair da caverna depois que o perigo passa. Redundantemente, ela tem que ser um dever. Diferente de uma sensação de paz e segurança, esperança é o se lançar para o desconhecido, o inseguro, o incerto, o escuro, um projeto.

O que seria amar senão se lançar no perigoso, jogar-se contra os leões confiando que eles não te atacarão, entregar-se nas mãos de um carrasco sem resistência na esperança de que ele não baixe o machado em nossa cabeça - apesar de poder fazê-lo? Amar não é entregar-se por inteiro, sem desconfiança e sem o medo de ser usado pela moça mais linda da face da terra? Ama quem se deita nos braços de alguém confiando que esses braços trarão carinho... Se temos esperança, é porque amamos, confiamos em algo ou alguém e sem certeza de que seremos acolhidos, acariciados, cuidados...

Soren Kierkegaard já escreveu: "Mas o amor, que é maior que a fé e que a esperança, se encarrega de construir a esperança". Só sabe viver a esperança quem sabe amar. Só vive a esperança aquele que ama. Amantes são esperançosos, se lançam para o desconhecido, sonham com o futuro, o pôr-do-sol e o nascer de outro dia (ao mesmo tempo). Tem que amar muito a vida para não se acostumar com casas, com luxo, com proteção constante. É esperança. "Amanhã será maior", "amanhã será melhor"! Por isso não ficarei aqui, escondido. Por isso nos lançamos nos braços uns dos outros. Por isso arriscamos abrir mão de tudo por amor, pelo amanhã de quem amamos.

E quando os dias são de tempestade, tristes, em que não temos força, encontramos aquele colo com pernas cruzadas no sofá que nos convida a reclinar a cabeça. Encontramos mãos que se entrelaçam por entre os fios de nossos cabelos costurando lembranças boas, fazendo um cobertor que nos aquece dizendo: "nem tudo é ruim, nem tudo é tão mau, olhe para o lado, olhe para mim". Encontramos consolo...

Mas, para além desse dia, para todos os dias de todos os amantes esperançosos, é o dever da esperança, a Lei do amor, que projeta, empurra, movimenta, ensina, traz novos ares, apresenta mudança, transforma o mundo. É a esperança que molda o desejo dos amantes para não viverem somente para si mesmos, mas para todos, para o amanhã, para os filhos que nunca viram e que talvez nunca virão. Só quem ama tem esperança. Só quem tem esperança sabe o que é se entregar para a incerteza do amanhã, para o nada, para um projeto que tem tudo para dar errado.

Como escreveu Slavoj Zizek ao ler as cartas de Paulo (e aqui termino): "Por essa razão o cristianismo é a antisabedoria: a sabedoria nos diz que o esforço é em vão, que tudo termina em caos, enquanto o cristianismo insiste insanamente no impossível. É óbvio que o amor, sobretudo na forma cristã, não é sábio". Somos loucos porque amamos, não somos sábios porque apostamos no amanhã antes mesmo que ele chegue. Temos esperança...






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quinta-feira, 25 de julho de 2013

Ecoteologia

Tenho ministrado aulas de Ecoteologia num Seminário. Confesso: nunca fui muito interessado pelos discursos ecológicos, sustentáveis, ecochatos, verdes ou sei lá mais o que. Entretanto, tive que me interessar e, consequentemente, me apaixonei. Do mesmo modo que aquele clichê de filmes teen em que as personagens principais, um menino antipático e uma adolescente toda "certinha", brigam o filme todo e, no fim, revelam aquilo que todos sabíamos desde o começo - que eles se amavam e eram perfeitos um para o outro - eu e a Ecoteologia nos relacionamos.

O que me incomodava nas propostas Ecológicas era, além de sua falta de consistência prática (cotidiana), a insistência em "materiais reciclados" e consumo "sustentável". Traduzindo: recicle aquilo que você produz e compre produtos determinados "x" que ajudam a Natureza. Ah é! Tem esse outro detalhe que me incomoda: a Natureza - uma entidade sem rosto, sem forma e vazia, mas que engloba tudo, inclusive nós, apesar de nos tratarmos como separados dela. Uma querida amiga me mostrou uma propaganda que explica o que estou querendo dizer: "Respeite a Natureza, mas não há garantias de que ela respeitará de volta". Os problemas:

- existem dois sujeitos se relacionando: você (que precisa respeitar a Natureza) e a outra entidade separada de você (a própria Natureza).
- Respeite-a porque você, humano, tosco, pequeno, inútil, parte ínfima de um planeta que já existiu milhões de anos sem você, é "maior" do que ela - tem o poder de "respeitá-la".
- Você é de antemão culpado pela falta de respeito com a Natureza. Ou seja: ela estava bem, até você aparecer...

Por essas e outras, Ecoteologia não me agradava. Entretanto, no meio do caminho havia uma pedra, e foi exatamente nesse clichê que tropecei: encontrei a pedra que ficava no meu sapato quando se falava em ecologia! "Consuma produtos sustentáveis [...] Recicle!". Qual o problema de reciclar? Nenhum. O problema é o porque você necessita reciclar: porque você consome. O que deveríamos fazer? Reciclar? Sim, mas depois de pararmos de consumir! E o que fazemos para solucionar o problema? Não! Não pare de consumir; apenas consuma direito...

E aqui entrava a questão: a destruição do que apelidamos de Natureza não é catastrófica por causa do homem (ou de você), mas pelo consumo. Biologicamente, todos consumimos todos. Se é vivo, consome. A diferença é que desenvolvemos a habilidade de consumir "ilimitadamente", ou melhor, crer que podemos consumir ilimitadamente e, pior, que é possível haver alguma cosia ilimitada. Quando uma praga de gafanhotos "consome ilimitadamente" uma plantação, ou a praga consegue mudar de lugar, ou morre. Nós fazemos o mesmo, com a diferença de que desenvolvemos maiores habilidades de sorte de adaptações (ou seja, conseguimos aumentar a sobrevida da espécie, mesmo consumindo todos os recursos de uma região). Se acaba alguma coisa aqui, em algumas horas estamos num local absurdamente diferente. Se acabam os recursos de um jacará no Pantanal, levariam anos e anos para sua espécie encontrar outro local (se tivesse muita sorte).

Além disso, consumimos porque desenvolvemos uma lógica sensacional de dívida e pagamento: você só consegue as coisas que precisa para viver mediante pagamento e só paga se estiver consumindo seu trabalho ou o trabalho de outro. Na prática, nascemos devendo, pois os recursos estão "dados", você só precisa pagar por eles... Por isso você trabalha!

Nessas horas eu me lembro de um texto sensacional de Paulo em Romanos 13:

"Não devam nada a ninguém, a não ser o amor de uns pelos outros, pois aquele que ama seu próximo tem cumprido a Lei. Pois estes mandamentos: "Não adulterarás", "Não matarás", "Não furtarás", "Não cobiçarás", e qualquer outro mandamento, todos se resumem neste preceito: "Ame o seu próximo como a si mesmo". O amor não pratica o mal contra o próximo. Portanto, o amor é o cumprimento da Lei. Façam isso, compreendendo o tempo em que vivemos. Chegou a hora de vocês despertarem do sono, porque agora a nossa salvação está mais próxima do que quando cremos."

A possibilidade de rompermos com a lógica capitalista, ou de consumo, é o exemplo cristão: nos anularmos para apagar uma dívida. Cristo não veio pagar a conta do pecado. O preço pago é aquele que é "impagável": o de graça, Graça! Cristo se sacrifica por nada, para ele excede antes mesmo de haver dívidas, pagamento. Nós não consumimos Cristo, nós aceitamos o próprio Cristo, seu sacrifício, sua anulação. Nesse caso, não há processo a ser consumido, e a única dívida que temos é de "amor uns pelos outros". Não há nada a dever, a não ser agir sem cobrar (amar). Nós não praticamos o mal contra o próximo, apenas amamos e, assim, cumprimos qualquer Lei.

O interessante é que além de Paulo atentar para essa dívida que não existe (a não ser o amor - que não é dívida, mas vida a ser vivida, não consumida), nos convida a amarmos compreendendo o tempo em que vivemos. O tempo que vivemos é de catástrofe (como todos os tempos). E, no nosso caso, é uma catástrofe global, generalizada e provavelmente falta. Não vivermos talvez sequelas, mas, literalmente, o fim. Paulo também prevê fim e, por isso, pede para que compreendamos o tempo em que vivemos. O tempo que vivemos é tempo insustentável. Compreendê-lo é romper com o consumo, descumprir com as dívidas a serem pagas.

Já é hora de despertarmos! Não é a proposta de consumo sustentável ou reciclagem o problema. O problema é a produção e o porque consumimos! Consumimos porque produzimos e precisamos vender a produção para pagar as nossas dívidas e poder continuar a ser um consumidor... Estamos viciados! Precisamos aprender a amar, a nos anular, a não exigirmos as dívidas e impedirmos a continuação da produção. Não precisamos mais produzir, atingimos um ponto em que TODOS podemos parar. A saída não é reciclagem sozinha, mas reciclar aquilo que já produzimos. A continuidade de produção e consumo não darão conta de se manter, de nos manter. O único consumo sustentável é a não-produção, o não-consumo. Não precisamos mais gerar riqueza, precisamos distribuí-la. Aliás, riqueza não são bens-de-consumo, mas Vida...




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segunda-feira, 17 de junho de 2013

De geração em geração...

Aprendi com Jung Mo Sung em uma palestra em memória do padre José Comblin, que o tempo bíblico não é linear, nem evolutivo, nem circular, cíclico ou depressivo. O tempo bíblico é geracional: de geração em geração. O mesmo Deus dos pais é o Deus dos filhos e dos filhos de seus filhos. Porém, os pais são diferentes dos filhos e dos filhos de seus filhos...

Cada geração constrói sua missão, tem seu propósito, desenvolve um plano diferente. Não necessariamente os filhos continuam ou devem manter o trabalho dos pais. Cada geração tem seu trabalho e marca seu trabalho. Aí está a liberdade: cada geração constrói um novo destino.

A geração de ancestrais constrói um destino e predestina a geração de seus filhos. Contudo, e como disse Rubem Alves, "Deus está no 'contudo'", os filhos não precisam necessariamente continuar a predestinar seus filhos do mesmo modo que seus pais fizeram. Olhando para trás, os filhos percebem o que deveria ter acontecido (se não tivéssemos aceitado isso, nosso destino seria diferente) e, nesse processo, alteram seu modo de viver, não precisam manter a maneira de viver de seus pais, reconstroem seus propósitos construindo um destino diferente para seus sucessores.

Não construímos destinos para nós, construímos para nossos filhos. Cada geração altera o destino da próxima, na medida em que entende e aceita o que recebeu de seus pais e a altera de acordo com as necessidades e os novos propósitos criados. Predestinamos casas, governos, crenças, ciência, cidades, ambientes, alegrias e tristezas. Essa é a responsabilidade de cada geração: destinar a próxima...

A geração anterior à minha me predestinou uma Democracia, destruiu uma ditadura. A minha geração poderia manter o movimento, promover a manutenção dessa Democracia, não desenvolver seu próprio trabalho - se fosse necessário. Contudo, e "Deus está no 'contudo'", minha geração não promoverá a a manutenção das propostas de fim de Ditadura, pretende construir e encontrar seu próprio Caminho, sua missão, seus propósitos. O Espírito sopra e se renova, inspira os santos de uma comunidade que, mesmo distantes, estão com o mesmo ar, com o mesmo vigor, com os mesmos sonhos. O Espírito soprou diferente em minha geração, está propondo um reavivamento, uma ressurreição de vidas que pareciam mortas há 3 dias...

Não conhecemos ainda nossa missão, não conhecemos todos os problemas, não conhecemos as consequências do que fazemos. Se conhecêssemos, estaríamos livres para agir tranquilamente. Contudo, não é o conhecimento que nos move, é a crença, a Fé; mesmo sem conhecermos tudo, agimos porque cremos que é bom. O Espírito está soprando... Somos livres para agir no escuro, sem saber exatamente o que estamos fazendo, mas crendo com todo o coração que valerá a pena...

Que Deus nos abençoe, que Deus abençoe os propósitos e os trabalhos da minha geração... Pois de geração em geração, Ele permanece fiel, o mesmo e Emanuel (Deus presente)...






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segunda-feira, 3 de junho de 2013

A arca

Passava a chuva, aparecia o arco-íris e minha avó perguntava: para mim e para minha irmã:  “vocês sabem porque é que existe o arco-íris, crianças?”. Fazia parte das férias na viagem para a casinha em Atibaia. Lembro de ter respondido algumas vezes essa pergunta, lembro de ter ouvido ela contar a mesma estória como se fosse uma grandissíssima boa nova. Minha vó nos dizia: ”o arco-íris foi feito por Deus para nos lembrarmos de sua aliança” – e em seguida meu avô concordava com a cabeça (que não é pequena...) e cantava algum hino de igreja.

Tive uma boa infância. Ouvi repetições que sussurravam novidades, mesmo eu sabendo o começo, meio e fim das estórias. Sabia que minha vó se referia à chuva como se fosse aquele dilúvio que inundava a Terra e ao arco-íris como a promessa esperançosa de que jamais haveria o desejo divino de destruição da humanidade. Hoje sei responder que arco-íris é um acidente de gotículas de água que, funcionando como prismas, refletem diferentes cores que desenham um caminho colorido que leva coisa alguma à lugar nenhum e se sustenta no ar. Hoje sei da possibilidade de participar do fim da humanidade, da destruição do planeta. Hoje poderia responder minha vó de outro jeito. Hoje poderia dizer como surge o efeito arco-íris e que a aliança parece estar um tanto cortada. Poderia, só que não...

A pergunta da minha avó era muito mais profunda. A pergunta da minha avó tinha a ver com a esperança eterna que não costuma falhar: a Fé. Minha vó não queria saber do arco-íris, minha vó queria saber se eu manteria um sonho vivo, se eu e minha irmã seríamos a resposta que o mundo procurava, se nós manteríamos a esperança acesa. Minha vó repetia o Gladiador: “O que é Roma? Roma era um sonho, tão delicado que só de sussurrar seu nome, poderia desaparecer”.

Da estória e das perguntas contadas pela minha avó, guardei uma parte estranha que sempre me encantava.  Tinha uma arca cheia de bichos atolada no cume de um monte. A chuva tinha parado, as águas estavam baixando, mas não tinha como se saber se já havia terra firme e habitável para se recomeçar a vida. Para resolver o problema, o tal do velhinho chamado Noé resolveu soltar pássaros regularmente para encontrar segurança e se libertar do cativeiro que a antiga protetora de sua vida se tornara. A arca, sendo a guardiã e a possibilidade de salvação da humanidade, com o fim da tempestade, havia se transformado numa prisão...

Primeiro Noé soltou um corvo, mas o bichinho rondou a arca, deu voltas em torno da prisão e retornou sem trazer nem um pingo de esperança. Agoniado e ansioso por liberdade, soltou, então, uma pomba. Ela saiu pela manhã apressada em sua missão, mas, ao anoitecer, retornou de bico vazio e olhos entristecidos. Noé, com as íris dos olhos marejadas, esperou mais uns dias e novamente soltou a pomba valente. Mais uma vez a mensageira desapareceu ao horizonte e, no fim de tarde, retornou apressada rasgando o céu alaranjado pelo Sol poente com um graveto de esperança no bico. Por fim, passados uns dias, Noé soltou mais uma vez a mensageira, mas, dessa vez, ela não retornou mais para a prisão. A mensagem estava dada.

Por vezes nossas arcas salvadoras que vencem tempestades param em cumes de montes e perdem sua função libertadora. Nossas arcas, assim, se tornam prisões. Alguns se apegam demais ao cativeiro e, quando soltos para serem mensageiros, apenas rondam a prisão, fazem uma análise panorâmica de tudo, mas não trazem esperança e novidade nenhuma. Em outras vezes, a missão de trazer alguma boa nova que nos tire de dentro da arca é acolhida com muita paixão por uma pomba, mas ela retorna para a casa-morta com o silêncio dos cemitérios. Lindo, porém,  é quando a mensageira encontra a liberdade, descobre vida fora da arca, segurança além dos muros da prisão, mas, não se contenta em se estabelecer num galho novo, retornando para a casa morta e avisando a todos que há um novo mundo surgindo, ainda há esperança.

A maturidade definitiva dessa experiência é quando a mensagem deixada é a mensagem do silêncio do nascer do Sol. Quando não precisa se perguntar onde está a pomba ou se há um lugar melhor do que a arca. Todos já sabemos: estamos livres! O silêncio da pomba gritava liberdade, salvação e segurança...

Se encontramos um sinal de esperança, precisamos retornar à arca para avisar os outros. Além disso, pode ser que a mensagem mais profunda e libertadora seja o silêncio do nascer do Sol, quando tudo ainda está parado, acordando e o brilho do senhor do dia nos obriga à contemplação. Desaparecer calado no horizonte pode ser a sutil mensagem de salvação. Daí vem a pergunta da minha avó: “vocês sabem porque existe arco-íris, crianças?”. Sim, vó! Para nos lembrar de que existe um sonho de esperança, uma aliança de Fé entre nós e Deus de que haverá terra seca num futuro, que deixaremos a arca para vivermos e desfrutarmos do mundo lindo de liberdade construído como casa-viva para nós...






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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Das formigas e das cigarras

Eu tenho uma avó que me contava uma estória sobre as formigas e uma cigarra. Eu lembro de gostar de ouvir a estória porque adoro ouvir estórias, mas sempre fiquei triste com essa estória... Sempre a achei injusta. Não vou contar com detalhes, mas, resumindo, era uma cigarra que cantava ao invés de guardar comida para o inverno enquanto que as formigas o faziam. Quando o inverno chega, a cigarra vai até o formigueiro, mas as formigas a deixam do lado de fora e dizem "quem mandou ficar cantando ao invés de 'trabalhar'?". No fim, a cigarra morre e a vida continua...

Essa estória sempre me entristeceu porque eu adoro cigarras. Passei a segunda metade da minha infância numa cidade pequena de interior que tinha verões bons e, com eles, muita cantoria de cigarras - e cigarras também! Adorava ouvir aquela gritaria no fim de tarde junto com um calor delicioso que me animava e conduzia minhas peladas de "fut" com ou sem amigos. As vezes chutava na parede como se fosse o gol, deixava a bola rebater e vir na minha direção e, de atacante, imediatamente me tornava o goleiro adversário que fazia defesas brilhantes! Nesse tempo eu não tinha medo de cair...

A torcida de cigarras vibrava! O juiz até apitava o inicio e fim de partida.

Quando a estação começava a virar, lembro da cantoria das cigarras ser mais forte, parecer mais grave - um tanto desesperada, talvez. Mas, isso não me entristecia; as bichinhas continuavam a me alegrar. Nos dias que viriam, eu me meus amigos de colégio corríamos depois da aula até as árvores que tinham por perto para caçar "cascas de cigarra". Elas morrem e deixam a armadura de um mês de batalhas à mostra para os arqueólogos juvenis. Levava aqueles corpos para casa, brincava com eles, dissecava sua estrutura, ficava impressionado com aquelas pequenas "garras". O inverno chegava e eu lembrava que elas morriam. Isso também não me entristecia, porque no verão seguinte não teria perigo de elas não aparecerem.

A estória era muito injusta! As formigas, sem vergonha, nunca cantaram comigo e, se eu tentasse me relacionar com elas, seria picado. Pior! Elas roubavam minha despensa e comiam meus chocolates e balas que escondia para minha irmã não roubar de mim na eterna disputa de nossas máfias ou inteligências governamentais - eu era meio KGB e ela meio CIA.

Agora, falando menos infantil e mais "sério", tem algo mais profundo que me incomoda na estória: ela serve para ensinar que na Natureza é natural que aquele que trabalha vence e o que não, morre. Ela serve para dizer que é "por isso que as formigas vivem muito e as cigarras pouco". Logo, com os humanos deve funcionar do mesmo jeito, pois é uma lei "Natural" ou "Universal". O que acontece, na verdade, é o contrário: humanizamos as formigas e as cigarras para justificar uma lei moral que inventamos para nós mesmos e para nossos filhos - talvez para a preservação deles: aquele que for mais malandro ganha. Ou então, quando alguém estiver feliz com a vida e deixar alguma sobra, tome-a o quanto antes e guarde. Azar o dele; quem mandou?

Deixem-me contar uma coisa: as cigarras podem viver até 20 anos, sabia? Depois de adultas e de se reproduzir, vivem uns 50 dias ou mais, mas, contando toda sua vida, podem chegar a 20 anos. Sabe quanto dura essa formiguinha que vai até tua cozinha e acaba com tuas coisas? 3 a 10 semanas. Na estória, é a mesma cigarra e a mesma formiga que se encontram no verão e no inverno, mas poderia ser qualquer outra coisa: dois meninos - um rico e um pobre -,  uma zebra e um leão, um bule e uma xícara, uma bola e uma estaca. Mas, nenhuma dessas coisas se encontra para conversar, nem são as mesmas. A formiga da estória deveria ser outra, que nem sabe quem é cigarra.  E a cigarra, já deveria ter morrido, pois já teria cumprido seu ciclo de vida.

Aliás, ciclo de vida: viver da maneira que tua espécie encontrou para viver. Cigarras trabalham cantando, formigas roubando despensas. E o que dizemos? Cigarras não trabalham, formigas sabem se "preparar para a vida". O que ensinamos para nossas crianças? É da Natureza saber roubar e trabalhar dessa maneira enquanto outro deixar espaço para você. "Seja mais esperto". O que ensinamos? O valor da vida é fazer o que for preciso para acumular mais...

Mas, quando uma formiga entra na tua casa, imediatamente você a mata. Vai roubar a minha, safada? Vai roubar da cigarra! Cigarras vivem mais do que formigas se compararmos o tempo de vida de cada uma; a estória estaria furada. Mas, ninguém vive mais ou menos, vivem de acordo com suas adaptações. Se há uma "lei" a ser tirada é: não existe regra, escolha uma quando possível e a siga. Porém, não se justifique pela Natureza para querer roubar dizendo que está se "precavendo para o inverno". Se tem uma coisa que aprendi assistindo "The Game of Thrones" é que em nome de se precaver do Inverno que está chegando as pessoas fazem muitas coisas - e coisas extremamente perigosas...

Odeio formigas, adoro as cigarras...

Entendo que quando a Bíblia diz para o preguiçoso aprender com a formiga, foi para aprender que é possível carregar um peso maior do que seu corpo - não que é para deixar de cantar e começar a roubar! Assim como quando vejo Jesus dando uma bronca em Marta é: tem uma cigarra aqui cantando e você está preocupada com o trabalho das formigas? Calma, aprecie todos os trabalhos! Saiba viver...

Para mim, isso é como o caso do político: queremos matá-los, mas, ao mesmo tempo, queremos ser como eles: trabalhar pouco, ganhar muito, viver de férias.

No fundo, se tem algo de Natural, esse algo é viver - não tem opção quanto a isso. Amo as cigarras! Tenho saudade daquela vida de caçar suas armaduras, de ouvir sua cantoria, de tê-las como minha torcida. Não as tenho mais. Porém, hoje tenho outras cigarras, ouço outras cantorias, tenho outras torcidas, sou contente, carrego pesos maiores do que eu como fazem as formigas, mas, além disso, canto e sou cigarra para outras crianças que jogam bola no quintal em verões de cidades de interior...

Chorei de saudade escrevendo este texto.




Gratis i Kristus

terça-feira, 2 de abril de 2013

Espiritualidade


É o ar, é o vento. Disse Jesus que o Espírito sopra onde quer, ninguém pode mandá-lo para lá ou para cá; apenas sopra. Perguntar “o que é espiritualidade?” é um exercício sem sentido – é uma palavra sem boca, sem pé, sem rosto, sem destino, sem determinação –; o significado se dá apenas na experiência com o Espírito, quando ele se revela, se manifesta. Aquilo que se refere ao Espírito se refere apenas enquanto ele sopra, enquanto se nota que o vento sopra.

Quando falamos de “espiritualidade”, talvez por não a “vermos”, imaginamos algo que está dentro de alguém, partindo de alguém, uma experiência individual, confinada em uma ou outra pessoa que são sensíveis ao espírito, a algo místico. Porém, vento não sopra trancafiado dentro de uma casa, fechado num pote, escravo de uma pessoa, dentro de um só coração. Espírito é vento, sopra onde quer, passa entre as casas, corre as ruas, faz bandeiras balançarem, refresca muitos ao mesmo tempo, não só um.

Comunidades se reúnem e desfrutam do mesmo ar, partilham o mesmo vento. Desconhecidos que se encontram trazem consigo novos ares. O movimento de corpos agita o ar. Creio que espiritualidade não esteja lá ou aqui, mas entre relações. Relações não tem lugar, tem experiências. A experiência com o Espírito não é propriedade do pai, da mãe, da criança, do pastor, do arquiteto, do músico, do ancião, do jovem ou de alguém, mas da Igreja, ou seja, do que acontece entre os membros, entre pessoas, entre casas, entre corações.

O pertencimento à Igreja não é o confinamento do Espírito em quatro paredes – pois então o vento não sopraria, seria tudo, menos Espírito. Relações que são tocadas pelo mesmo Espírito são Igreja, não as paredes aonde nos encontramos. Para que nosso vento não morra, para que o Espírito não deixe de soprar, não podemos nos fechar em quatro paredes, porém, não podemos também parar de nos encontrarmos. Precisamos de um encontro, de um lugar/momento que propicie relações. Precisamos ser Igreja, participar da Igreja. Espiritualidade é a experiência viva da Igreja de Jesus Cristo.

A série de metáforas e silêncios, cantos e celebrações, descrições das experiências vividas e testemunhos, choro e luto, podem ser expressões da espiritualidade, podem ser filhas de relações que trazem esperança, renovo, nova vida, a Fé. Como disse João, se pregam o Jesus ressurreto que vive em nós – está entre nós –, são do Espírito de Cristo, apresentam a eternidade. É a experiência de Cristo em nossas relações que nos consola e reanima, traz um novo ar, um sopro, um vento que movimenta e refresca a esperança que podemos chamar de espiritualidade: aquilo que é experimentado do Espírito...




Gratis i Kristus