quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Do cárcere ao santuário

Por esses dias, conversando com uns amigos sobre práticas esportivas, ouvi um deles dizer sobre seu joelho machucado que "ele era muito problemático". Na mesma hora, uma luz brilhou bem na frente de meus olhos e minha cabeça moveu-se para trás como se tivesse levado um golpe. "Ele? Mas o joelho não é parte de você?" - perguntei. Dali em diante tenho pensado nessa outra coisa que me pertence, mas que talvez não seja eu, e se chama "corpo".

Sem dúvida essa é uma das primeiras constatações que fazemos quando tomamos consciência de nós mesmos: "tudo aquilo que não sou eu, é outro". Simples, prático, objetivo e direto. Mal nascemos e já podemos nos considerar geniais! Meu pai não sou eu, minha irmã não sou eu, minha bicicleta não sou eu e... essa coisa que vejo para fora de mim e se mexe quando mando...Qual o nome mesmo?... Hmmm... Mão! É, mão... Sou ou não sou eu? Existe algo em mim que vê o que está em mim para fora de mim. Encontramos nosso corpo e sua acompanhante: a alma.

Essa constatação estranha que fizemos com despertar da nossa consciência, nos fez inventar uma dicotomia entre alma e corpo. Pois bem, os filósofos gregos consideravam o corpo como sendo o cárcere da alma, a prisão finita de uma coisa que consegue imaginar o eterno. Porém, ao mesmo tempo, a cultura grega era apaixonada pelo cuidado com o corpo, pela sedução que esse cárcere é capaz de promover. Uma prisão deliciosa, gustativa, dádiva dos deuses! Um verdadeiro santuário...

Quando a cultura grega encontra o judaísmo, no tempo em que Roma se avizinha a Jerusalém, essas duas idéias são muito bem vindas e dão correntes ao cristianismo: o corpo é causa do pecado, é santuário de Deus. A prisão deve ser combatida, devemos nos libertar de suas amarras, porém, ao mesmo tempo, devemos preservá-la, já que é a obra divina, a Casa do Pai. A alma é garantia da eternidade, o corpo da perdição. Apesar de ser cárcere, o corpo deve ser purificado, e, apesar de ser santuário, o corpo deve ser "aprisionado". Maldita consciência é essa que divide as coisas! Cultura da alma e cultura do corpo... Santuário e prisão... Mesmo quando junto as coisas, ainda me vejo fora de mim.

As disputas entre o corpo e a alma fizeram de nós reféns da beleza e/ou da sabedoria. Quem nunca ouviu a frase: "Mulher bonita e inteligente é impossível! Ou uma coisa, ou outra"? Dei o exemplo da mulher não por machismo, mas pelo simples fato de admirar a beleza feminina muito mais do que a masculina. Admito, tenho atração por mulheres... O que não vem ao caso, pois o problema é estacionarmos nessa separação e primária. Ou vivemos no mundo cult, ou na geração saúde. Ou doutores, ou bombados. Ou salvos, ou perdidos. Ou tristes insatisfeitos, ou contentes satisfeitos... Apesar de todos compreendermos e sabermos que somos um, corpo que pensa e alma que vive, não nos libertamos dessas amarras. A prova disso é que provavelmente você está pensando agora: "mas então, qual o certo?", ou ainda: "vai dizer que o certo é unir os dois...".

Não! A proposta não é ser a favor ou contra, aprisionado ou livre, eterno ou finito, cult ou sarado! Continuamos presos nas divisões dicotômicas! Mesmo se quisermos "unir" as retas, já partimos que são retas e, além disso, continuarei me vendo para fora de mim. Caminhemos avante para expandirmos nossa consciência! As coisas não são boas ou más por si mesmas, como já dizia Spinoza, mas é a minha relação com elas que as definem como tais. O corpo não é cárcere e nem santuário, é a minha relação com ele que o faz ou um ou outro. A alma não é mais ou menos importante, é relação com ela que dita isso...

Bom, mas assim retornaríamos à nossa descoberta da infância: quem sou eu que não é o outro? Crescemos e descobrimos que podemos dividir nosso próprio corpo em muitas outras partes, inclusive em partes que não vemos. Descobrimos também que podemos dividir nossa alma em várias partes; em subconscientes, inconscientes, egos, superegos, id's, amigos imaginários, alteregos... E em todas elas, tantos nas partes da alma como nas do corpo,  podemos ser nós. Podemos inclusive olhar para um grupo de pessoas e dizermos dele que somos nós. Afinal, quem sou e quem é meu corpo? Continuo me vendo para fora de mim...

Quando olho para o Sol, o vejo muito menor do que ele é, imagino que esteja a uma distância menor do que a que ele está e acho que é ele quem gira em torno da Terra. Porém, quando descubro que ele é muito maior, está a uma distância gigantescamente maior e  parado enquanto é a Terra que gira em torno dele, continuo vendo-o pequeno, bem próximo e se movendo, mas minha relação com ele muda. Quando descubro que posso dividir-me em muitas partes, em muitos corpos e em muitas almas, continuo me vendo de dentro de um corpo, ainda percebo uma diferença, porém, minha relação com essa diferença muda. Cárcere? Santuário? Alma? Minha relação com eles muda. Em certos dias meu corpo é prisão que me faz fazer aquilo que não queria. Em outros, é um santuário magnífico onde Deus habita. Em momentos minhas relações com minha alma são de unidade, em outros de guerra e confusão. Tem dia que sou um ser uno, tem dias que sou mais que múltiplo...

Não podemos parar na primeira experiência da consciência, mas devemos avançar e descobrir os instantes de unidade e diferenças que há nas relações vividas entre corpo, alma, eu, eu mesmo e qualquer outro. Relações afetivas e cognitivas experimentadas por muitos inteiros e divididos relacionados. Os problemas que surgem no desenrolar desse pensamento são muitos, mas deixemos para a expansão de nossa consciência ver mais tarde...



Gratis i Kristus


PS: Deus não habita em santuários construídos por mãos humanas... Cuidado com as plásticas e os vícios de academia!

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