quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Rebanhos... Apenas rebanhos...

Voltava hoje para casa, saído da faculdade, acompanhado por meu compadre Pedro Conceição (ótimo músico por sinal, aconselho que procure algo deste fera na internet). Discutíamos (dentro de nossas limitações) as influências de um pensamento chamado “marxista” em nossa sociedade, na nossa maneira de viver. Enaltecemos o brilhantismo de suas análises econômicas, suas críticas, e a incontestável e indiscutível complexidade de suas obras. Uma ciência tào difícil, e como percebemos, tão banalizada. Faz parte da boca de qualquer um. Mas não, este não fora o foco de nossa conversa, o objetivo era falar de suas influências. De modo bem simplista (como corre na boca deste qualquer um que te escreve), notamos que a solução de Marx para os problemas da sociedade capitalista era a consciência de classe por parte da “classe operária” (observação: hoje em dia quem é a classe operária?) e isso influencia ainda os movimentos sociais e os partidos de esquerda na busca por uma tal de igualdade. E é neste ponto, finalmente, que descobrimos uma influência sublime, suprema, elevada: a “consciência de massa”. Talvez não fosse objetivo de Marx, ou ainda, não foi ele quem inventou essa consciência, ou idéia de consciência, mas de sua teoria e também de sua ideologia, percebemos uma intensificação do agrupamento de rebanhos, do ajuntamento de bandos, das grandes manadas humanas... Das massas!

Setorizamos nossa sociedade. Marx ajudou bastante nestas divisões. Pessoas que buscam grupos que validem direitos que desejam adquirir, que conquistem algo que as torne parte da sociedade (que dialeticamente e' composta por estas, por sinal). Ser parte não é apenas ser cidadão, viver em um tal lugar ou manter relações de proximidade com os demais humanos, criar laços, é necessário levantar uma bandeira, seguir uma série de regras, doutrinar-se à molde de alguéns. Vivemos em constantes conflitos de grupos, não divergências humanas, mas batalhas de alcatéias. Essa noção de consciência de massa nos trouxe artifícios antes nunca pensados como o marketing e a mídia, o pastor e o cajado (não necessariamente nesta ordem). Aprendemos a manipular esta consciência, a controlar as manadas, a preparar cabrestos, caixas, grades e currais. Não guiamos mais nossos passos, mas somos empurrados e condicionados a acompanhar as demais pernas. Até precisamos repensar o ditado de “nadar contra a maré”, deve agora ser “caminhar contra a manada”.

Fomos influenciados por esta idéia de classe a nos fecharmos uns para os outros. Aquele que não pertence a minha classe não é digno de partir comigo o pão (ou o feno, sei lá). Como diz outro compadre meu, Rafael Diogo Valmoleda, “quem não pensa é pensado”. Somos pensados por nossa massa, deixamo-nos pensar por nosso bando. Inclusive na política! Delegamos nossa responsabilidade de governar nossa terra a bandos que representam nossos bandos e ainda culpamos a massa por escolher mal os bandos representantes. Que incoerência! Mais incoerente ainda é que nessa complexidade de massas, de massificação, as pessoas ao invés de se unirem, estão cada vez mais individualistas, mais indiferentes, mais blasé. A consciência de classe ao invés de incentivar a fraternidade e o cuidado por aqueles que fazem parte de manadas, incentiva o egoísmo, egocentrismo e mais algum outro ismo que exclua pessoas. Somos individualistas com uma moral de bando, quer dizer, ou sem identidade ou bem esquizofrênicos.

Como cristão, quando olho para as igrejas que fazem parte desta sociedade, ao invés de ver seres humanos que imitem o homem que foi mais humano, vejo gigantescas manadas cercadas e felizes em sua prisão, em seu pasto fechado. As massas religiosas, alienadas. Marx chamou os religiosos de alienados, mas não são apenas eles, todos somos alienados, fazemos parte de bandos. E aqueles que não são alienados, são alienígenas. Cristo compreendeu que ser humano não pode ser animal, não pode viver em bando, em grandes manadas, deve ser ser humano, indivíduo. Deve pensar para além de sua moral de bando, deve ser como o samaritano que interrompe sua viagem para ajudar um judeu largado quase morto a beira da estrada, deve aprender a curar no sábado e a se sentar com ímpios e pecadores, prostitutas e publicanos. Mas os cristãos não, sua moral de bando os impede de olhar para a miséria da vida, para a necessidade de um governar-se a si mesmo, de caminhar com as próprias pernas, de um amadurecer, crescer, explorar da sua humanidade. Não conseguem. Sua moral de bando chama isto de egoísmo! Veja só! Egoísmo! É egoísta pensar para além do que dizem que você deve pensar! É egoísmo olhar para a humanidade e ver seu flagelo! Egoísmo buscar respostas às perguntas que ainda não foram feitas, refazer a realidade! E enquanto esta moral esmaga o peito, pessoas morrem, o individualismo impera, o sofrimento aumenta e a liberdade clama por ser liberta...

Será que é pedir demais abrirmos mão de nossas manadas? Esquecer de nossos bandos? Deixar de sermos animais que andam como rebanhos e sermos humanos que são responsáveis por si mesmos? Já passamos da maioridade! Já é século XXI! Lembremos do que somos, sejamos o que deveríamos ser. Conversando hoje com meu compadre Pedro Conceição (lembra dele no começo do texto?), lembrei-me de Kierkegaard: "A contemplar as multidões à sua volta, a encher-se com ocupações humanas, a tentar compreender os rumos do mundo, este desesperado esquece-se de si mesmo, esquece do seu nome divino, não ousa crer em si mesmo e acha demasiado ousado sê-lo e muito mais simples e seguro assemelhar-se aos outros, ser uma imitação servil, um número, confundido no rebanho”. Desesperados! Rebanhos desesperados! Esquecemo-nos de nós. Classe demais e vida de menos. Temos um desafio de buscar a humanidade de cada homo sapiens, a potencializar o governo de si mesmo, a consciência da vida, não a de classes, mas a da vida. Isso não gera individualismo e egoísmo, mas independência e amadurecimento. Para aqueles que são mais religiosos, santidade e imitação de Cristo. Temos o desafio de deixarmos nossa organização animalesca e voltarmos a nossa construção humana.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A Palavra

João 1: 14

A Palavra de Deus. Letra? Texto? Bíblia? Não! Carne. Não! Sangue. Aquele que come este pão e toma este vinho, aprecia e degusta esta carne e este sangue todos os dias, o faz em memória dele. O faz em memória da Palavra. Denomina-se como santo. Santo não por si, mas pela Palavra. Santo não por uma vida regrada, mas por uma vida textificada: escrita com sangue e impressa na carne. Um valor vivido, uma Palavra encarnada.

A Palavra de Deus veio aos homens. A Palavra de Deus que se faz homem. A Palavra de Deus que é a graça e a verdade. A Salvação dos homens. Vimos sua glória, a glória do Único vindo do Pai. Cheio de graça e verdade. A graça que salva, a verdade que liberta. Conhecemos esta verdade, ela viveu entre nós, ela nos libertou. Vimos sua glória, glória do Único vindo do Pai. Por esta graça somos salvos. Vimos sua glória, glória do Único vindo do Pai. Uma glória que morre, uma glória que se esvazia, uma glória que fracassa. Uma glória sentada em um jumento, nascida numa manjedoura, morta assassinada como criminosa.

A Palavra de Deus testemunha. A Palavra de Deus martiriza-se. A Palavra que era no princípio e deixou silenciar-se. A Palavra que criadora fora calada pela criatura. A Palavra que por amor deixa o silêncio falar alto, muito alto. Tão alto que este clama pela Palavra. Clama pela luz. Luz que não é derrotada pelas trevas. Luz dos homens. Palavra. Carne. Sangue. O Deus encarnado, a palavra encarnada, o amor que se fez homem. Os homens que vêem este homem, encontram a Palavra. Os homens que vivem este homem, vivem a Palavra. Não é necessário ler, não é necessário falar, não é necessário ouvir. É necessário viver. A Palavra de Deus não se escreve, fala ou ouve, mas vive. Vive entre os homens, vem ao mundo, encarna-se.

A Palavra de Deus: Jesus de Nazaré, aquele que é chamado de Cristo.

Odisséia - Resenha Filosófica (Trabalho para a faculdade)

Livre para ser em devir frente a aleatoriedade

A Odisséia de Homero conta a história de Odisseu, o rei de Ítaca, que participara durante dez anos da guerra de Tróia e agora retornava para casa. Entretanto, este regresso não seria tão simples; Ítaca já não era mais a mesma, sua mulher Penélope não era mais a mesma, seu filho Telémaco já não era mais o mesmo, e inclusive Odisseu já não era mais o mesmo, aliás, ele mesmo buscava descobrir quem era. Os muitos anos distante desfiguraram-no e bagunçaram sua casa. Ítaca agora não tem um rei, Telémaco não tem consigo o pai e Penélope está acompanhada por pretendentes que desejam desposá-la por considerarem o marido desaparecido, que tenta redescobrir-se, como morto.

O retorno conturbado para casa sofreria intenperes e resistência dos deuses. Poseidon setir-se-ia afrontado e perseguiria Odisseu. Calipso aprisionaria Odisseu em sua ilha, Zeus destroçaria seu barco por causa de uma desonra cometida pelos homens de Odisseu aos gados de Apolo. O homem tenta encontrar-se, busca voltar àquilo que já foi. O homem em busca de ser homem, descobrir o que é ser homem, mas sofre na caminhada as interferências deste divino. Afinal, o que são estes deuses? Se este homem sofre dos destinos e nas mãos dos deuses, os incontroláveis deuses, como será que é livre? Qual liberdade, se é que existe, que este homem possui frente a este incontrolável? Como este homem descobre-se livre?

Independentemente dos desejos de Odisseu, de suas práticas, seus sonhos, metas e planos, quaisquer decisões tornar-se-iam ineficazes caso um deus decidisse intervir em sua vida. Para escapar de tal interferência, dependeria do consentimento e intervenção de outro deus. Logo, este homem está solto e rendido à aleatoriedade, não é capaz de controlá-la. Vive em um “salto de fé”, como diz Kierkegaard em seu livro “Temor e Tremor”, no qual apresenta a vida de um homem como se este estivesse suspenso sobre um fio, atravessando um abismo em completa escuridão e sempre arriscando o próximo passo, já que não enxerga a continuidade do fio.

Odisseu nunca pôde decidir o de “onde viria” e talvez jamais alcançasse o cumprimento de seu anseio do “para onde iria”. Seu destino é traçado, transformado e retraçado pelos seres divinos. Sua viagem é aleatória, não é boa nem ruim, triste ou alegre, do bem ou do mal, simplesmente é um percurso, é vida. Nesta aleatoriedade cabe então uma moral extremamente conveniente, que ora para o homem viajante situações iguais serão boas, ora más. Em detrimento deste aleatório chamado divino, gera-se então esta moral conveniente, jogada na conta de deuses, os inexplicáveis deuses.

Com a formação, delimitação e definição desta moral que a ele convém, o homem forja-se e procura formar, delimitar e definir aquilo que ele mesmo é. Face aos acontecimentos e desastres de sua jornada, Odisseu toma decisões e faz escolhas que resultarão, em sua somatória, aquilo que ele é: sua memória. Estas memórias, que em sua moral conveniente serão assistidas como boas ou más dependendo do que melhor convir, farão de Odisseu aquilo que ele é. Logo, a possibilidade de liberdade que o homem tem é de construir sua moral conveniente frente a aleatoriedade. O decidir como encarar sua jornada, como guardá-la em sua memória e como lembrá-la, então, decidir quem é. A liberdade de Odisseu não está em decidir o de onde vir ou o para onde ir, mas sim, no “quem ser”.

O homem não tem controle sobre sua viagem, mas tem controle daquilo que pode ser em sua viagem. Nisto surge outra questão: sua moral é tão conveniente que transforma-se sempre e a todo instante, nunca cristaliza-se. Claro, se esta moral cristalizar-se, não será uma moral conveniente, que adequa-se as vontades e ao percurso percorrido daquele que a rege, mas sim uma moral estática, absoluta e não participante da aleatoriedade. Logo, esta moral não participa da vida que se apresenta. A moral estática não trata da existência do ser, da liberdade do ser, mas do “não-ser do ser”, da morte ou aprisionamento do ser. Se este ser parar de transformar-se, ser em constante devir, para tentar consolidar o que é, na verdade perde o seu ser, morre, deixa de existir. Quando Odisseu vai ao Hades, fica perceptível uma diferença entre o mundo dos vivos e dos mortos na dinâmica de um e na inércia de outro. Enquanto entre os vivos as memórias se constroem, entre os mortos elas mantém-se sempre as mesmas, nostálgicas e eternamente estáticas.

Odisseu é livre para decidir quem ser ao enfrentar a aleatoriedade e confrontar-se com o incontrolável (viver a vida), mas seu ser nunca é. Este homem nunca pode viver estático, sua existência não se dá sempre igual, mas, pelo contrário, como tudo a sua volta muda e é aleatório, sua existência da mesma maneira tem que ser dinâmica. A vida sempre em devir, Odisseu sempre em devir. Sua existência, sua moral conveniente, sua liberdade, sua memória e aquilo que ele é nunca sendo, mas sempre em devir. Frente a aleatoriedade da vida o homem não é, mas descobre-se livre por poder escolher quem ser neste sempre devir.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Igreja sem paredes e hora marcada

"Amigos, apressem-se. Está na hora de irmos à igreja." - disse um rapaz.

O que será que diferencia uma igreja de uma casa? O que diferencia uma igreja de um shopping? O que diferencia uma igreja de qualquer outra construção dotada de paredes e portas? É interessante como numa frase simples está implícito um conceito de igreja que guia nossa religiosidade (no melhor sentido possível da palavra), nossa fé e nossa relação com o divino. É interessante como numa frase simples descobrimos que somos cristãos de hora marcada, Corpo de hora marcada, Igreja de hora marcada.

Definição básica de igreja: Corpo de Cristo/Noiva de Cristo/Sal da terra e Luz do mundo. Respostinha de nossas escolas dominical, mas sem reflexão de sentido e sem reflexão na nossa prática de vida. Não somos Corpo. Não somos noiva. Se somos, estamos desmembrados e divorciados. Não vivemos sob uma mesma missão e nem sincronizamos nossos órgãos (olhos, cérebro, coração...). Como igreja, aliás, mal somos humanos o suficiente para sermos comparados com um corpo ou com uma mulher. Nossas igrejas não tem alma nem dinâmica, são rígidas demais, fortes demais, com tijolos demais. Não somos luz, mas nos preocupamos muito com as contas de luz a pagar. Não iluminamos vidas e muito menos iluminamos da porta da igreja para fora, apenas para dentro. Enchemos de raios e claridade nossos palcos, nossos púlpitos e nossos cultos, mas do mundo mesmo, pouco somos luz. Sal? Só se for grosso jogado no chão. O partilhar da comida, do pão, do sal, não são pautas. Somos igreja de hora marcada, de lugar marcado.

Ser/Fazer igreja não tem como ser para si. Ser/Fazer igreja não tem como parar em paredes. Ser/Fazer igreja não tem como se limitar a hora marcada. Como naquela frase construímos nossa religiosidade? Nossa Fé? Nossa relação com o divino? Um belo bem-de-serviço. Vivemos para aumentar nossa casa, nosso negócio, nossa parede. Vivemos para cumprir nossos horários, nossos ritos, nossos compromissos com Deus. Pago minhas contas de fé e espero a entrega de meu benefício celestial. Construímos grandes templos, cheios de gente, cheios de paredes.

Corpo de Cristo. Noiva de Cristo. Sal da terra e Luz do mundo. Igreja não é parede, igreja é Corpo. Igreja não é parede, igreja é Noiva. Igreja não é parece, igreja é Sal. Igreja não é parede, Igreja é Luz. Igreja não tem horário, Igreja tem dinâmica. Igreja tem vida, tem libertadade, tem responsabilidade, tem submissão, tem gosto, tem visão. Igreja tem Humanidade. Igreja é gente. Gente que partilha de sonhos, que vive Cristo, que é Corpo, Noiva, Sal, Luz. Gente que vive Igreja todos os dias, que tem uma missão todos os dias, que sente a dor dos órgãos, a dor da vida, o sofrimento das discórdias, o desgaste da comida, a obscuridade e as trevas a sua volta. Gente que anseia por brilho, pelo Reino, que vive ser Igreja, que vive ser Cristo. Igreja que não está presa a um lugar, que não tem hora para começar e terminar. Igreja é vida, maneira de viver. Missão. Igreja não é parede. Igreja é pessoas.

"Amigos, apressem-se. Está na hora de sermos igreja." - disse o Cristo.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sabedoria trágica

"Ser ou não ser?" - diz Hamlet. "O sumo bem?... Melhor não nascer, não ser, nada ser." - diz Cileno à Midas. "O que acontece com o homem bom, acontece com o pecador... Este é o mal que há em tudo o que acontece debaixo do sol: o destino de todos é o mesmo... e por fim eles se juntarão aos mortos." - escreve o sábio em Eclesiástes. "Quem prevê o que vai acontecer? Desordem reveza com ordem, Erros sucedem verdades. Em sua cegueira o homem ignora As vicissitudes das coisas..." - reflete Lao-Tsé. Pesado, triste, forte, trágico. Como destas coisas existe esperança? De onde vem uma vida? Uma força pra viver? Como pode o homem continuar em sua miséria, constatando sua miséria, vivendo sua vida limitada, resistindo à sua consciência de seu sofrimento?

"Das divergências surge a harmonia" (Heráclito). Uma sabedoria trágica, uma existência "Eclesiástica", a esperança que surge do "é o que temos para hoje". Se melhor fosse não nascer, não ser, nada ser, se somos, é o que temos para hoje. A vida é aleatória, incontrolável, caótica, mas é vida. Uma esperança que surge na possibilidade de ser, amadurecer, crescer, se formar, aprender e render a vida, mesmo que seja em meio a esta triste miséria, triste realidade. Uma esperança cristã. Uma força de Cristo. "No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo: Eu venci o mundo". Um Deus que se esvazia, se faz homem, sofre a miséria da vida, e vence. Vence? Sim, dá sentido, significado à sua existência e à própria miséria, aleatoriedade. Faz de seu nada valores. Faz de sua dor esperança. Faz de sua morte vida. E apresenta desta morte, uma nova vida.

sábado, 11 de setembro de 2010

"Apple Age"

Ser extremamente técnico, prático, objetivo, útil e cumpridor de tarefas específicas; esta deve ser a função de um ser na Era da Maçã. Sempre novo, incansável, desbravador de atalhos e descubridor de fins rápidos, "fast-food". Estas são as ações de um ser da Era da Maçã. A preocupação não está em percorrer um bom percurso, correr uma boa corrida, mas sim, inventar maneiras de estar na linha de chegada sem se cansar, sem desgastar, sem sofrer, sem sentir, sem perder, sem ganhar, apenas chegar quebrando todos os recordes de tempo e de espaço. O menor tempo no menor espaço. Fugindo da fadiga, fugindo da velhice. O devagar é descartável e o velho obsoleto. Estes são os padrões nesta Era da Maçã.

Interessante como numa era tão dinâmica a vida seja tão estática. Tudo corre tão rápido que não se percebe mais o tempo. Aquele ou aquilo que é novo logo tornam-se velhos, e nem se passou a vida. Na busca por mascarar a velhice precoce, a estética desenvolve-se. O novo que logo torna-se velho tenta manter as aparências, ouve músicas novas, acompanha a moda, mas todas estas coisas também já tornaram-se obsoletas. Um mundo inteiro descartável, uma praticidade tão prática que torna todos aqueles que a praticam, impraticaveis.

Os atalhos que logo nos entregam os fins prontos são tão úteis que nos tornaram completamente inúteis. Já não vivemos mais. Já não envelhecemos mais. Já não sentimos mais. Viver, envelhecer e sentir: privilégios e futilidades que não cabem em nossa nova era. O fruto que comemos era proibido, a caixa que abrimos continha todos os males e o Kronos que matamos nos roubou a humanidade. Somos imortais. Imortais que não vivem a vida, mas vêem-na passar. Um mundo tão dinâmico que tornou-se inerte. Tão mecânico que tornou-se estático. Somos obsoletos para esta nova era, somos obsoletos para a Era da Maçã. A criatura que engoliu o criador.

Qual fora o problema daquele Adão e daquela Eva no tempo em que maçã era um fruto e não uma Era? O problema de querer crescer antes do tempo, maturar antes da hora, ser Deus ainda sendo recém-nascido humano. Qual é o problema dos Adões e das Evas neste tempo em que maçã é Era e não mais fruto? O problema de querer crescer antes do tempo, maturar antes da hora, ser Deus ainda sendo recém-nascido humano. Comemos o fruto do-bem-e-do-mal, comemos um fruto que abriu um buraco em nosso estômago, um buraco que nos engole por inteiros, engole corpo-alma. Já não somos mais espírito. Este está muito fora de moda, não se adequa aos padrões desta nova era, Era da Maçã.

Porque não ouvimos Lenine? Porque não deixamos entrar em nós um pouco mais de paciência? Porque esquecemo-nos de Pessoa? E das pessoas? Porque não deixamos mais um Sócrates falar de virtude? Porque não paramos para fazer perguntas? Porque não permitimos um existencialista falar da existência? Porque escondemos nossas angústias? Porque um Lao-Tsé não pode mais falar seus poemas? Porque não compreendemos que fazemos parte de um Todo? Porque um Nietszche não pode mais criticar? Porque não escrevemos mais nossas vidas com sangue? Onde está o sangue? Onde está o coração? Fomos tão engolidos assim? Este buraco é tão grande assim? Agostinho falava dele, só não viu onde ele estava. Porque não podemos viver ao invés de sermos vividos? Será que é tão ruim sentir dor? Tão ruim ter medo? Tão ruim sorrir? Tão ruim ter angústia por causa de um amor? Tão ruim amar? Tão ruim morrer? Como saberemos se já não vivemos mais? Como querer cuidar da vida se não a conhecemos mais?

A Era da Maçã roubou-nos de nós. Precisamos de um freio. Precisamos aprender a percorrer todo o percurso, correr toda a corrida. Quem disse que ser feliz é estar na linha de chegada? Quem disse? Porque não pode ser percorrer o percurso para chegar lá? Será que a felicidade não está no caminho? Como saberemos se hoje temos apenas o técnico, o prático, o objetivo, o útil e o atalho? Nessa Era da Maçã este texto está obsoleto. O tempo gasto por quem o lê é desperdício. Que sentido faz ler um texto como este que não tem finalidade, não cumpre um papel, não muda o mundo, não é prático, não acelera e nem te dá uma resposta? Um texto que não apresenta atalho, mas na verdade quer voltar ao percurso? É completamente inútil! Não perca tempo, feche a janela e dê boas vindas a Era da Maçã...