quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O velho Vicente

Fazia sol. Não aqueles sóis gostosos de fim de tarde de verão na praia, realmente fazia Sol. Pela grande porta lateral do vagão aberta, a tentativa de vento batia no rosto do velho Vicente. Um mínimo de respiro - algo naquela carona deveria valer a pena. De pele escura e castigada pelo excesso de trabalho durante os dias de infância, era o velho Vicente. Fora uma criança forte, trabalho no terreninho do pai não lhe faltara. Cresceu moço baixo, mas bonito. Casou-se já com dezoito e decidiu se aventurar em vida urbana. Nunca foi de falar muito - apenas o necessário. Mas, dentro daquela cabeça hoje rala, branca e calva, nunca faltaram pensamentos esquentados pelo Sol. Sabia-se feliz e habituado a não se habituar.

Quando atingiu os trinta anos, Vicente saiu para comprar pão. Era domingo e, na esquina oposta à padaria, tinham construído um casebre com uma placa cheia de letras grandes e de onde vinha uma grande algazarra. Por curiosidade de matuto, o homem pensativo decidiu-se por quebrar o hábito e foi visitar a bagunça. Música alta, homem eloquente, roupas elegantes, calor dos infernos. Vicente se converteu a um cristianismo que até então não conhecia. Voltou para casa e "convidobrigou" sua mulher e filhos a conhecerem seu novo paraíso. Na igreja, aprendeu a ler, escrever (apesar de muito mal), educou os filhos e tornou-se um fiel.

Vicente sempre falou muito errado, mas nunca o desnecessário. Não se habituou a ficar sentado ouvindo aquele outro homem que o convertera vez por outra extrapolar nas palavras. Decidiu abrir outros casebres em outros lugares. Com a bênção de Deus e dos homens, Vicente tomou sua mulher e filhos e correu pelas cidades e vilarejos vizinhos por anos. Montou casebres, correu atrás de professores, ensinou outros que, como ele, não sabiam ler. Não era homem de se habituar, ficava por 3 ou 6 meses em cada novo casebre e já ia para o próximo. Deixava que cada casebre elegesse seu "homem eloquente", que muitas vezes eram mulheres de bastante idade, e partia para uma próxima parada.

Seus filhos se habituaram a viajar, então decidiu se estabelecer em uma cidade. Botou-os na escola e fez o que pode para que não se habituassem a se habituar. Por alguma razão amava o mundo. Viajava nos fins de semana, trabalhava na feira durante a semana. Todos cresciam, o homem envelhecia. Pegou carona num trem para o interior, havia um casebre com problemas. Fazia sol. Não aqueles sóis gostosos de fim de tarde de verão na praia, realmente fazia Sol. A grande porta lateral do vagão estava aberta e o vento forçava os olhos do já velho Vicente. O ralo cabelo branco da calva cabeça daquele senhor de pele escura castigada pela infância, balançava. O trem corria, os olhos lacrimejavam. Aquele dia era mais um que valia a pena...



Gratis i Kristus

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Religião e doutrinas

Religiosamente me dedico a fazer críticas à religião. Não poderia ser diferente, sou religioso e apaixonado pela minha religião. Nietsche, um filósofo que angustiado se divertia com suas brilhantes críticas à religião, escreveu em Ecce homo: "ataco somente as coisas as quais se exclui qualquer antipatia pessoal [...] atacar para mim é um sinal de benevolência [...] os cristãos mais convictos foram sempre de algum modo dignos e benévolos". Bem, digo o mesmo. Aliás, talvez eu diria que ataco somente aquilo que me apaixona - indico um texto que escrevi nesse blog chamado "A Causa". "Amar os inimigos" pode ganhar um significado interessante aqui...

Os aspectos que mais me incomodam na religião são os dogmas e as doutrinas, não eles em si, mas o que muitas vezes fazemos com eles. Não sou dos irresponsáveis que jogam fora todos os dogmas e amassam todas as doutrinas apenas por não fazerem parte da "última moda" ou por não terem sido criadas pela geração Steve Jobs, tenho consciência de que existe uma história gigantesca incorporada à eternidade que me precedeu e criou as fundações das casas que tenho frequentado. Como exemplo, sou defensor ferrenho do "sacerdócio universal de todos os santos", dogma que já leva nas costas seus mais de 500 anos. Porém, procurar um meio para que a existência desse dogma seja absoluta e irrevogável em termos "legais", que dará origem ao legalismo, nos faz tropeçar e falhar com as transformações salvíficas de que a religião se propõe.

O fundamentalismo está plenamente de acordo com o "sacerdócio universal", por exemplo, já que torna a leitura dos textos Bíblicos literal, o que possibilita que qualquer um os leia. Porém, esse tipo de leitura atropela toda a beleza cultural, diversidade e construção histórica da Bíblia - isso sem falar nos problemas teológicos que essa vertente causa. Contra isso, surge a Teologia Liberal com estudos filológicos e avanços arqueológicos, que protegem a história, mas restringem o "sacerdócio universal" ao "sacerdócio acadêmico". Os fiéis leitores do Livro Sagrado tornam-se reféns dos estudiosos e das últimas traduções e descobertas. Para proteger um dogma inventamos outro que, recebe como reação a criação de mais um que preserva a existência de um, mas contradiz a de outro. Estamos imersos numa rede de trâmites legais e a burocracia informal rola solta na religiosidade dos fiéis.

Olhando para todo esse balaio, resolvi refletir sobre um texto bíblico, 2 Crônicas 30: 18 - 26, já que esse livro faz parte dos dogmas que construíram as bases da minha caminhada de Fé. Era tempo da Páscoa, mas nem todo o povo tinha se purificado e cumprido com os rituais exigidos pelo Templo. Os sacerdotes ficaram receosos e a Pascoa seria "cancelada", o que também seria um sacrilégio e quebra de um dogma. O rei, porém, decidiu orar por misericórdia do Senhor e mandou que todo o povo fosse servido mesmo que sem o ritual de purificação e que a Páscoa fosse celebrada. O Senhor se agradou da postura do rei e do povo. O rei mandou que a carne fosse distrubuida para todos e que o churrasco fosse comido com gosto. Pois bem, naquele tempo a festa celebrada fora tão fantástica que nem nos tempos de Salomão se tinha visto uma comemoração como aquela.

Os dogmas e as doutrinas são importantes e dão identidade à religião e às posturas de Fé. Porém, se utilizados como um termo "legal", uma determinação absoluta que tem valor num pedaço de papel e não na vida, acaba por ser destruidora. Ela pode acabar com uma festa. Por outro lado, se os dogmas são defendidos e construídos baseados na vida e na maneira de viver - ao invés de determinações pautadas num discurso - faz da celebração a expressão dessa Vida. Religião que exige contrato de membresia como garantia da caminhada de Fé tem um potencial destruidor em suas palavras, pois não são exposição da vida que se vive, mas do papel em que se prende. Religião deve calcar-se no dia-a-dia, nas ações, na paixão, no amor. Não deve ser a doutrina a criadora de uma religião, mas a religião sua interprete. Como religiosos, nos apaixonemos e aprendamos a nos doutrinar...


Gratis i Kristus

domingo, 8 de janeiro de 2012

Passados sete dias de novo ano, já posso refletir e esperar

Já faz uma semana que calendarizamos mais um ano. Imagino que vividos os sete primeiros dias do novo ano, posso afirmar que estão iguais aos sete últimos do ano anterior. Nada muda muito debaixo do Sol. Li muitas reflexões de fim de ano e muitas propostas para um novo, mas todas foram ou muito em cima da hora ou muito antes do novo tempo começar. Passados simbólicos sete dias, penso que estamos em boa hora para refletirmos com mais calma...

Descobri ano passado que Liberdade, um palavra que todos sentimos seu significado, mas não fazemos a mínima idéia de como explicá-lo, além de dar nome à uma estátua, custa muito caro. Para um povo lutar contra um líder que limita sua liberdade, muitas vidas somem da noite para o dia - noite essa que chega a durar meses. A cara moeda que paga pela liberdade, também enche os olhos daqueles que parecem já possuí-la. Uma luta pela liberdade é mercado fácil para o "livre-comércio". O povo que lutou, as vidas que se foram e o líder que é deposto, estão ligados, amarrados e dependentes de outros povos e outros interesses que nada em a ver com sua luta. Por esses outros interesses, lutam muitos homens que tentaram a vida toda serem livres, e acabam por morrer pela liberdade de outros e, no final, ninguém fica com a moeda.

Tentar ser livre, se libertar, ter voz, criar corpo, crer no impossível é encantador! É destruidor, é angustiante. Querer ser livre e saber que por não ter conseguido um bom emprego durante anos de vida, terá de morar na beira de um morro. Sonhar com um vôo de liberdade e, durante a noite de olhos fechados, ouvir dos céus o som das águas que roubarão de ti a casa e levarão teu vôo ao chão. Saber-se dependente de um governo, cativo do dinheiro, solitário indivíduo livrado de sua casa que estava prestes a desbarrancar. O dilúvio que levou os sonhos de uma liberdade.

A liberdade custou caro - tanto no ano passado quanto nesse. Cuido do Ministério de Adolescentes da minha igreja, e vi muitos se rebelarem por liberdades que parecem ser simples. Vi muitos entrarem em conflitos, crises e prisões. Tudo em nome da liberdade! Em todos os casos, as liberdades foram restritas pelo meio em que os lutadores vivem, pelas pessoas que os cercam, pelas complexas redes de poder que estão presentes desde muito antes deles terem nascido. Quanto a essa liberdade, não sei o que fazer; apenas perco o sono, me distancio do travesseiro e olho, oro, espero.

Quanto a esperança, espero que esse ano seja mais livre. Espero que eu me sinta mais livre, espero que possa contribuir para a liberdade dos outros. Apenas posso falar da liberdade que conheço, da que sinto, da que habita em mim e me faz crer que os outros também podem ser livres. No meu dilúvio, posso ser como o corvo, que rodeia e rodeia em volta da arca, mas jamais se sente seguro para voar por cima das águas e encontrar terra firme. Posso ser como a primeira pomba, que até se arrisca conhecer o mundo, mas teme perder o conforto da arca e retorna para seu ninho. Porém, posso ser como a outra pomba, da qual não conhecemos a história, pois voou longe e desapareceu no horizonte para nunca mais voltar. Sumiu nos céus, sumiu no mapa. Mas, graças à corajosa pomba livre, todos os demais animais da arca puderam ter coragem e certeza de que já era tempo de deixarem sua proteção.

Quanto a essa liberdade, posso dizer que uma comodidade pode tornar-se prisão, que um porto-seguro pode tornar-se Alcatraz, que uma igreja pode virar um inferno.  Lugares cômodos e comuns? Fujamos deles! Não nos acostumemos com buscar água no poço, mas aceitemos o convite para sermos fontes de água. Para pagar ao mundo pela minha liberdade eu não tenho moedas suficientes, mas, para pagar a mim mesmo pela não-comodidade, tenho esperanças de sobra. Espero que nesse ano a liberdade se faça mais presente, que eu me presenteie com ela. Espero que as águas se renovem, e que como pássaros, não nos acostumemos a viver em arcas depois de já cessado o dilúvio.


Gratis i Kristus