sábado, 30 de outubro de 2010

Devaneio... gigante devaneio...

Nas expressões do tipo "o cérebro humano tem a capacidade de armazenamento de 'x' computadores", ou "o corpo humano é como uma bateria de 'y' volts", tem como pressuposto a necessidade de comparação com uma máquina. Aliás, coloca o ser humano em uma leve "competição" com a máquina, como se esta (criação do homem, lembrando) fosse melhor ou mais perfeita ou a medida das coisas. Um lance meio "Matrix", mas bem-vindos à insani... Modernidade. Na verdade, esta introdução foi só um pequeno devaneio para anunciar o gigante que virá agora. O texto não tratar-se-á desta disputinha entre homem/máquina, mas sim de um certo padrão homem/máquina, ou alguma coisa que nos diferencia do homem ou da máquina, já não sei bem nossa natureza (piadinha sem graça...).

Os computadores tem uma capacidade absurda de armazenamento de dados. Sim, superam o cérebro. E além desta capacidade de guardar informações, tem consigo uma programação fantástica de organização destes dados. A virtude humana explorada em nossa Modernidade até então fora essa capacidade de guardar informações. A Educação construída sob o alicerce do "decorar" (nosso decoreba) que vigora ainda hoje em nossas instituições de ensino, é a expressão deste desejo Moderno de acumular o máximo de "conhecimento" (na verdade, informação) na memória. Tabuada, datas, nomes, guerras, órgãos, ossos, fórmulas e por aí vai. Nosso método de avaliação de um aluno bom, um aluno que aprendeu, está firmado também neste quesito. O ser capaz de guardar estas coisas está capacitado a frequentar uma universidade, passa no vestibular, vai bem nas provinhas do colégio e se assemelha muito a um computador. Agora, o que este devaneio propõe-se a devanear, é se esta potência de decorar, guardar, salvar na memória estes dados são a nossa virtude, o algo que constrói o humano, o que caracteriza sua humanidade, o que pode medir quem ele é. Será que o decorar é nosso mediador?

Tem uma coisa que a máquina por si só não é capaz: esquecer. Nesta afirmação continuo preso àquela comparação entre homem/máquina em uma disputa, e porque? Porque enquanto você lê este texto, em sua concepção construída de acordo com o espírito de nosso tempo, o esquecer é ruim, e esta diferença homem/máquina te dá a impressão de que estamos "perdendo", porque modernamente, o que é bom (como discutimos no parágrafo anterior) é a capacidade de armazenar dados, e não a possibilidade de esquecê-los. Entretanto, perceber que somos capazes de esquecer não é um demérito, a idéia é refletirmos e repensarmos nossos valores do que é "bom ou ruim". Um computador armazena todos os dados que lhe forem apresentados (esta palavra é importante, dê atenção a ela, "apresentados": trazidos à presença), os organiza e por si só não esquecerá. Ele não é capaz de "deletar" de sua memória sozinho, numa relação dinâmica e reflexiva consigo e com o outro. Isso é fantástico! Nós temos um dom brilhante de esquecer, de não percebermos mais as coisas, de termos dados conosco e não acessá-los, não encontrarmos o caminho até eles. Os humanos são complexos demais e vivos demais para existirem em inércia. Sua reflexão consigo e com o outro o faz esquecer. Ou, não sei, seu esquecer o torna reflexivo consigo e com o outro.

As coisas se revelam para nós. Um fenômeno surge e nós corremos atrás dele para descobrirmos o que o fez surgir. Não encontramos as coisas por nossos méritos, mas porque "elas resolvem se mostrar a nós". Elas se fazem presentes, a nós são apresentadas. Em nossa memória também se fazem presentes. As coisas ausentes não existem, a ausência não existe. Então porque consigo imaginar coisas ausentes? Ou ausentar coisas presentes? Porque concebo a possibilidade do meu esquecimento. Eu esqueço! Eu esqueço, logo imagino. Em Parmênides, o ser e não ser, o caminho do presente e do ausente, estas segundas possibilidades são excluídas por não serem, logo, não existirem e não nos levarem a lugar nenhum, um caminho inexequível. O nada não existe. Então como o concebo? Como o imagino? Sabendo de sua capacidade de esquecimento. Como seriam as coisas se me esquecesse disso? Se deixasse de lembrar da existência daquilo? E se me esquecesse de tudo, chegaria ao nada? Sim. O nada não existe, mas nosso esquecimento sim. Somos capazes de desprezar os dados que armazenamos. Nessa luta por lembrar e desprezar as informações, refletimos, criamos e imaginamos.

E esta reflexão me levou a pensar da primeira reflexão de que me lembro de ter ouvido falar: "PARA ONDE VOU?". O "de onde vim" e o "quem sou" em ordem cronológica viriam antes desta, mas, em ordem humana, vem depois. Pensar no amanhã, no que teremos para comer, se teremos algo para comer, veio antes do "o que sou" e do "de onde vim". O que sou é num meio de iguais não exige tanta reflexão (por isso a demora do pensamento de individualidade), e o de onde vim sempre foi simples ao olhar sua progenitora. O pensar "para onde vou" criou o imaginário religioso, os sonhos pós-morte e estas coisas. E porque pensamos esta coisa estranha? Porque nos esquecemos, e ainda pensamos se nos esqueceremos. Lembrarei do que vivi? Lembrarão do que vivi? Haverá lembrança? A partir disso, qual o sentido de eu estar aqui? Se esquecerão de mim, porque estou aqui? Aliás, quem sou? Então: de onde vim? Quem sou? Para onde vou? Se tudo isso será esquecido! Se me esqueço de mim! Se esquecem-se de mim! Ai de mim! Ai de nós! Precisamos guardar as coisas, fazer com que se lembrem, que não esqueçam, imaginemos o "como": pinturas na parede, poemas, histórias dos antepassados, tradição, culto aos mortos. Tudo porque esquecemos. Esquecemos, logo refletimos. Diferente daquele bando de armazenamento de dados. Armazenamos sim, mas a possibilidade de esquecê-los nos faz humanos.

Criamos um medo pelo esquecimento e este nos trouxe o "sentido da vida". Esquecermos nos dá sentido. A maneira como lidamos com o esquecimento guiará o modo de viver e o imaginário do pós-morte. A nossa História humana foi construída na base deste esquecimento. A nova historiografia percebeu isso, logo, começou a dar ênfase àquilo que ficou debaixo dos panos, abaixo dos fenômenos históricos, daquilo que guardamos em nossos dados e livros de História. Para o surgimento de um Gandhi, existiu um numero gigantesco de desconhecidos e fatos escondidos não lembrados que o construíram, o tornaram um fenômeno histórico. Para o estourar de uma guerra, muitos termos, pessoas, acontecimentos esquecidos se passaram. Para um vencedor, existiram e foram esquecidos milhares de vencidos. Nossa história está baseada e chegou onde chegou por causa dos esquecidos, do nosso esquecimento. O valorizar apenas o lembrado, a lembrança, nos fez destruir o mundo. Se tudo será esquecido, porque guardá-lo? Protegê-lo? Antes as explicações místicas, divinas e tradicionais ainda resguardavam um pouco o todo, mas, depois de nosso marco Moderno, o único deus vivo a se manter foi a lembrança, a capacidade de guardar informações, e todo o resto nem como demônio fora tido, tudo tornou-se indiferente, pois tudo será esquecido. Esquecemos o esquecimento, aquilo que trouxe a reflexão humana, valorizamos apenas os dados (que por alguma razão chamamos de conhecimento) e agora destruímos tudo. Temos uma sociedade cheia de dados e zerada de reflexão. Uma sociedade de massas cheias de decoreba que em seu interior clamam por reflexões sufocadas por informações.

Pra que banirmos o esquecer se ele nos torna humanos que refletem? Se ele nos freia, desacelera o trem que ruma para o fim? Esqueçamos nossas desavenças com o esquecimento. Sou cristão, e conversando essas idéias estranhas com outros cristãos (entre eles minha mãe, cristã), todos disseram que nossa vida não pode ser voltada para si, aqueles que vivem em função de outros não temem a morte. Bem cético, concordei e somei: não temem a morte pois sabem que não serão esquecidos. Viver em prol do outro, como disse em parágrafos anteriores, refletindo consigo e com o outro, não tememos o esquecimento ou o esquecer, seremos lembrados. Mesmo que por pouco tempo, não para todo o sempre, seremos lembrados por quem amamos até que estes deixem de ser lembrados por nós, sejam lembrados por outros que também amam e estes por outros, e por outros, e por outros... Algo simplório e ingênuo, belo demais para a voracidade da lembrança Moderna. Puro demais para a intoxicada e drogada necessidade de eternidade Moderna. Abriu mão do Reino dos Céus cristão, muito fantasioso para uma mente que não gosta de esquecer, para ficar com um Reino de Informação, indiferente, preocupado apenas em não ser esquecido na eternidade! Nas máquinas! E azar do resto que será esquecido e lembrado por ninguém! Ninguém, que é um nome lembrado por todos, e que se refere a alguém esquecido por nossa possibilidade de esquecer,que não existe, mas o concebemos porque esquecemos.

Um comentário:

  1. Olá,

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