Numa meia casa no Paraisópolis, vivia um homem chamado Jonivaldo, muito conhecido como Jó. Era um homem íntegro, justo e trabalhador. Tinha sete filhas e três filhos, um cachorro, uma televisão, algumas redes na casa, que tinha um quarto, um banheiro, uma sala e uma cozinha. Servia de pedreiro, porteiro, vigia e todo mais serviço que lhe fosse requisitado. Não era rico, mas amava a toda gente.
Educara de maneira brilhante suas filhas e filhos, um batalhador e guerreiro na vida. Perdeu sua mulher muito cedo, fez como pode para não desmanchar a família e mante-la unida, não apenas debaixo do teto de seu barraco, mas também do teto de uma igreja e no que chamava de “os caminhos do Senhor”. Nunca esqueceu de seus filhos em suas orações, e sempre fora grato ao Senhor pela vida, que apesar dos pesares, era a que tinha e a única a ser vivida. Era feliz.
Certo dia, os anjos vieram apresentar-se a Deus nos Céus, e entre eles estava “ele”, o “ferão”, pé-preto, corinthiano, tinhoso, inimigo, do mal, pai da mentira, acusador, caído... Diabo. O Senhor perguntou:
- De onde vens, camarada?
O Diabo respondeu a Deus:
- De andar e visitar meus parentes em Brasília. Aproveitei a caminhada, rodeei por aquelas terras e dei uma esticada até São Paulo.
Deus de imediato diz ao Diabo:
- Reparou no meu servo Jonivaldo, muito conhecido como Jó? Não há ninguém naquela terra como ele, irrepreensível, íntegro, homem que teme a Mim e evita o mal... no caso você.
Com um sorriso amarelado, devido a piada do Senhor, sorrateiramente o Diabo aproveita a deixa:
- Pois então o Senhor não acha que teu servo Jó, ou Jonivaldo, mereça um pouco mais da vida? Acaso não puseste uma cerca em volta dele e o impedira de desfrutar de outros luxos da vida? Será que ele não O teme por não ter mais nada a se apegar além daquela igrejinha e uma esperança que ele chama de “os caminhos do Senhor”? Tenho certeza que se deres tudo o que um coração de homem deseja, ele não mais será íntegro e temente a Ti como é hoje.
Pós um momento de silencio cósmico, universal, Deus propõe ao Diabo:
- Pois bem. Pode entregar a Jonivaldo, muito conhecido como Jó, o que crês que um coração de homem deseja.
O Diabo saiu então da presença do Todo Poderoso e retornou aquelas terras.
Passado um tempo, num domingo, dia de culto na pequena igrejinha, a tarde, Jonivaldo, muito conhecido como Jó, arrumava-se para a sagrada ocasião, colocava sua gravata preta, seu terno marrom desbotado e preocupado, visava o relógio a todo instante. Nenhum de seus três filhos chegara até então em casa. Já eram quase seis horas da tarde, o culto começava as sete, e precisariam sair naquela hora para chegar a tempo de acalmar o coração e prestar a reverencia necessária para a comunhão com os outros fiéis.
O trinco da porta girou, e os tres jovens entraram na meia casa apressados, sorrindo e extasiados de alegria. Cada um tinha nos ombros uma mochila preta. O pai, que nunca vira as malas, curioso pergunta aos filhos:
- O que é isso ai? Onde conseguiram essas malas?
- Encontramos pai! Na rua, enquanto vínhamos para cá! Demoramos pois não sabíamos o que fazer com o dinheiro, mas decidimos e... – foram interrompidos por Jó:
- O que? Que dinheiro?
Os meninos abriram as malas abarrotadas de notas e continuaram sua fala antes interrompida:
- Vamos te ajudar a reformar, ou até mesmo construir uma nova casa! Agora podemos ter um carro! Cursarmos uma faculdade! A vida pode melhorar!
- Não. É muito dinheiro, não sabemos de onde vem, de quem é. Com certeza tem dono. Amanha entregaremos a polícia, agora apressem-se, precisamos ir ao culto. – disse Jonivaldo.
- Mas pai... Olha esse dinheiro! Achamos, e achado não é roubado! Quem sabe não foi Deus que preparou este momento para nós! O senhor é um homem íntegro, bom, que teme a Deus, deve ser tua recompensa! – retrucaram e insistiram os meninos.
Tres suspiros depois, o irredutível Jonivaldo, muito conhecido como Jó, falou:
- Não. Já tenho dez recompensas por ser um homem íntegro e temente ao Senhor. E tres delas estão com mochilas cheias de dinheiro que não as pertence, e como as ensinei os caminhos do Senhor, devolveram junto comigo estas coisas na polícia amanha. Agora vamos a igreja, tuas irmãs estão prontas e estávamos os esperando.
Para recuperar o fôlego e secar o suor que já brilhava a testa, Jonivaldo, muito conhecido como Jó, foi ao banheiro lavar o rosto e espairecer, para se concentrar e voltar seus olhos para a sagrada ocasião que estava por vir, o culto em sua igrejinha.
Ao sair do banheiro, os tres meninos haviam sumido, e como eles, as mochilas também. Atrasado Jonivaldo reuniu as filhas e juntos foram a igreja. Deixou a porta de casa aberta, caso os meninos voltassem, pois acreditava em seus filhos, e, como dizia, havia os criado nos “caminhos do Senhor”.
Ao chegar na igrejinha, as sete e meia da noite, o culto não havia ainda começado. Os pastores pediram um instante da igreja e faziam naquela ocasião uma reunião entre as lideranças da comunidade. Por Jonivaldo, muito conhecido como Jó, ser um homem íntegro e temente a Deus, era reconhecido e respeitado dentro da igrejinha, e ao chegar a porta, fora convidado para tal reunião também. Com a testa franzida e uma expressão de preocupação, Jó pensava: “Como é possível?! O que há de tão urgente que não possa ser esperado para depois do culto? É uma sagrada ocasião! Nosso momento de comunhão!”
Dentro de uma sala, nos fundos do templo, estavam reunidos o pastor presidente da igrejinha, seu auxiliar, dois presbíteros, o tesoureiro, um homem bem vestido que Jó nunca vira, e agora ele também. O pastor presidente olhou para Jó e exclamou:
- Este aqui é Jonivaldo! Mas muito conhecido como Jó! Pode chamá-lo assim, ele é que nem o da Bíblia!
Retornou os olhos para o homem bem vestido que Jó nunca vira por um instante, e logo voltou-se novamente para Jonivaldo:
- Querido irmão, é o seguinte: este abençoado aqui bem vestido que está em nossa igreja, é um irmão pastor de uma igreja bem maior! Aquela do centro que cresce sempre e tem um programa santo na televisão para propagar o evangelho sabe?! Ele teve uma revelação do Reino de Deus e veio aqui propor para nós esse movimento. Nossa pequena comunidade agora será um braço desta grande, para aumentarmos, claro, o projeto de Deus pra São Paulo. Aí o irmão aqui, me propôs que eu fosse ser servo de Deus numa igreja maior, levasse comigo meu auxiliar e nisso tudo, você por ser muito respeitado aqui dentro, torna-se pastor no meu lugar! Comecando já hoje! Porque precisamos pedir um dízimo para fazer essas mudanças, e eu sei que se o senhor, que é um homem integro, bom, temente ao Senhor, fizer esse sagrado momento de ofertas, nós conseguiremos o necessário para esse investimento no Reino. Glória a Deus!
Jonivaldo transtornou o rosto, e disse:
- Não.
O pastor com um sorriso muito amarelo e o olhar confuso continuou:
- Mas meu irmão, veja bem...
Logo foi interrompido por Jonivaldo:
- Não.
E isso se repetiu mais umas duas vezes, até que o homem bem vestido calma e friamente falou:
- Jonivaldo. Isso aqui não é brincadeira. É um negócio sério. Estamos tentando fazer o melhor para todos. Talvez nossos objetivos e valores não sejam os mesmos, mas se aceitar essa proposta, poderá cumprir com o que acredita, fazer o bem que bem entende. Voce terá o poder necessário para mudar as pessoas e construir essa igreja da maneira que considerar correta e dentro dos caminhos do Senhor. Fará o que quiser com o dinheiro arrecadado, e poderá ajudar e salvar muita gente.
A sala silenciou-se. Após o silencio terreno mas mortal, cheios de expectativas, os senhores sentados em reunião ouviram de Jonivaldo:
- Isso de fato não é brincadeira, é um negócio sério. Um negócio de troca e transferência de valores. Os teus são financeiros, e os meus são verdadeiros. O poder que querem me dar nem vocês o tem. Quem os domina é o que dizem estar negociando. O que considero dentro dos caminhos do Senhor me impede de aceitar essa proposta desumana, mas diabólica. Sou um homem íntegro e temo a Deus, não aceito barganha destes desejos desumanos que destroem famílias, vidas e pessoas. Hoje perdi tres filhos por causa de dinheiro, e uma igreja por causa de seu poder.
Ao dizer isso, Jonivaldo, muito conhecido como Jó, virou-se para a porta, levantou a cabeça, chamou suas sete filhas e foram todos para casa. Ao chegar, nem sinal de seus tres filhos.
No outro dia, segunda-feira, logo de manha, um amigo de Jonivaldo, muito conhecido como Jó, bateu na porta e extremamente feliz o chamara para o trabalho que seria o melhor de suas vidas. Uma rica madame paulista daria uma festa e o primo de seu amigo era funcionário dela e responsável por contratar serventes, mordomos, manobristas e empregadas que deixassem a casa sempre limpa. Naquele dia a empresa que contratara falira, outras não tinham previsão de funcionários e agora o primo estava correndo como louco atrás de pessoas confiáveis que tratassem do serviço. Jó, por falar bem em público e ser íntegro e confiável, seria um dos mordomos e recepcionaria os convidados, enquanto suas filhas poderiam trabalhar num bico como empregadas. Jó de imediato aceitou a proposta e a família toda deixou de lado os afazeres de outros serviços, empregos e escola, e foram para a mansão da madame.
Chegando lá, enquanto Jó trabalhava, a rica madame se engraçava e ria com suas filhas enquanto fitava-o constantemente. A noite, durante a festa, a madame chamou-o de canto e prontificado, Jó apresentou-se:
- Pois não, madame?
- Jonivaldo né? Ou posso te chamar de Jó como é conhecido? – perguntou risonha a senhora.
- Jonivaldo sim, madame. – respondeu.
- Pois bem... Jonivaldo, como estava falando com suas filhas, fiquei interessada em seus serviços e quero contratá-lo. Não apenas para estes serviços que esta fazendo, mas para outros também... Se é que você me entende... Mas, como fiquei sabendo por elas que você é um homem muito integro, fiel e temente a igreja, eu em troca e para garantir que não terá problema e valera a pena, os trarei para morar aqui e pago os estudos de suas filhas enquanto trabalham para mim também.
Jonivaldo, estático e ansioso pelo fim da conversa dá sua resposta:
- Madame, em primeiro lugar sou íntegro e temente a Deus, não a igreja. Vim trabalhar aqui hoje por necessidade, mas de maneira honesta e sincera. Não barganho minha família, minha casa e nem meu corpo. Sou servente, mordomo, pedreiro e o que mais for necessário, desde que meu trabalho não roube minha alma, meu coração e minha integridade.Se quiser fazer algo por mim e minhas filhas, que faca de bom grado e por gostar dos nossos serviços, não por causa de um interesse descompromissado e para seu prazer egoísta. Mas como sei que de maneira alguma é de bom grado, vou embora.
Jó pediu licença da presença da Madame, buscou encontrar as sete filhas, puxou-as para consigo e buscou ir embora. Indignadas com a atitude do pai, de recusar a proposta de emprego que mudaria suas vidas, duas, das sete retornaram para a mansão e por lá ficaram durante toda a noite, enquanto Jó e as outras cinco retornaram para casa.
Na manha seguinte, Jonivaldo, muito conhecido como Jó, acordou com a porta de seu quarto abrindo. Abriu os olhos e viu os tres filhos de cabeça baixa colocando as tres mochilas no chão.
- Voltaram? Com todo o dinheiro? – resmungou sonolento enquanto levantava da cama.
- Sim. Nos arrependemos de contrariá-lo, e demo-nos conta de que o senhor, como sempre está certo. Perdoe-nos por sumir. Trouxemos todo o dinheiro e o entregaremos junto contigo hoje na polícia. – responderam os irmãos.
- Eu sabia que meus filhos conheciam os “caminhos do Senhor”, e que retornariam para casa. Esse dinheiro bem poderia nos ajudar, mas não é nosso e não sabemos de onde vem. Vamos agora mesmo entregá-lo as autoridades. – concluiu o pai saltando da cama.
No ponto de ônibus, Jó, junto a seus filhos e as mochilas, encontraram as duas filhas que ficaram na casa da Madame. Arrependidas por deixarem o pai, e vendo que aquela não queria o bem da família e sim o próprio, pediram perdão e foram para a meia casa descansar. Jó e seus filhos seguiram caminho, foram a delegacia e entregaram lá o dinheiro.
Ao retornar mais uma vez a meia casa, Jonivaldo, muito conhecido como Jó, exclamou aos Céus:
- Obrigado Senhor! Pela vida que me deste. Tudo criaste, tudo formaste e me dera dez filhos. Alguns se foram, mas retornaram. Os perdi, mas encontraram o caminho de volta. Não tenho aquilo que o coração dos homens deseja, mas aprendi a ser humano e compreendo que o que mais vale nessa vida é amar, ser íntegro e temer a Ti.
Mais tarde, alguém bateu a porta e Jó foi atender. Um senhor distinto, de terno engomado, bem arrumado, com uma maleta na mão e os olhos arregalados e interessados disse:
- Boa tarde seu Jonivaldo. Sou um político importante em Brasília e perdi algumas malas com dinheiro. Fiquei sabendo que o senhor as devolveu na delegacia. Muitíssimo obrigado. Como forma de agradecimento, quero convidá-lo a vir comigo para Brasília, exercer uma função no meu gabinete, e não se preocupe, o senhor não precisará trabalhar demasiado, é um cargo bem tranqüilo. Estamos reajustando algumas verbas e preciso de pessoal na folha de pagamento. O senhor pode trabalhar como um tipo de assessor, inventar alguns projetos e até ajudar algumas pessoas carentes como o senhor. Seria um trabalho muito justo para um homem íntegro como o senhor.
Jonivaldo, respondeu:
- Não, muito obrigado meu senhor. Por ser um homem íntegro, trabalho de verdade. Se exerço funções, são as que condigam com o que creio. Sou um homem temente a Deus, e não é por dinheiro, prazeres, poderes que me deixarei levar a corrupção. Sou homem simples, mas não bobo. Conheco muito bem os caminhos do Senhor, e com certeza não são atalhos que facilitam a vida. Mas uma vida intensa que é trilhada por inteiro. O senhor pode levar o teu dinheiro e teu cargo de volta para tuas terras. Aqui tenho tudo o que preciso com minha família, que não tem tudo o que o coração do homem deseja, mas é íntegra e temente a Deus.
Fechou a porta e deixou o homem do lado de fora. Este por sua vez, deu as costas e seguiu seu rumo. Foi aos Céus ter com Deus:
- Tudo bem, já compreendi. Jó é humano demais para querer o que o coração dos homens deseja. Nem dinheiro, nem prazer e nem poder o corromperam. De fato tens que se agradar deste homem, pois não há ninguém como ele naquelas terras. – falou o Diabo.
- Existe sim. Muitos. Que como Jovanildo, muito conhecido como Jó, não tem tudo aquilo que o coração do homem deseja, e as vezes nem o que um ser humano precisa. Mas são íntegros, bons e incorruptíveis, pois temem a Mim e amam. – Finalizou Deus apontando para o pequena parte de humanidade que restava nos homens daquelas terras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário