Seguindo pela rua cinzenta e estreita de Londres, Alice com seu vestidinho branco mais avançados do que seus poucos 9 anos de idade caminhava para a padaria a pedido de sua mãe. Com o dinheiro exato para a compra dos pães, guardados em sua pequenina bolsa alva com pequenos detalhes de rosas bordadas à mão, dobrava a esquina saltitando em seu mundo infantil de imaginação que contrastava com sua vestimenta.
O vento sul soprou forte. O equilíbrio nos leves saltos ficou comprometido, as mãos foram obrigadas a segurarem a barra do vestidinho branco e o chapéu azulado saiu dançando de acordo com a música cantada pelo sopro do vento sul. Alice pôs-se a correr atrás do chapéu, como explicaria a sua mãe o sumisso deste na volta para casa? Melhor seria chegar uns minutos atrasada do que levar uma bronca de horas. Corria pulava em direção do objeto que ironicamente insistia em dançar com o vento e ao mesmo tempo brincar de pega-pega com a menina. "Esse chapéu há de ver comigo!", pensou Alice, "Ficará de castigo uma semana ou mais dentro do armário!".
Rodopiou, ascendeu, giro, planou e pousou pendendo para a direita e passando por entre duas grandes portas de vidro. Alice com os olhos tão fixados no chapéu nem reparou no único degrau que separava a porta de vidro da calçada. Deu de queixo e cotovelos no chão. Abriu os olhos e bem a sua frente estava ele, o chapéu fujão. Irritada, levantou, deu uns tapas e uma sacudidela nos joelhos e arrancou com a mão direita o chapéu do chão. Retornando os olhos para o ambiente em que se encontrava, a garotinha se viu dentro de um salão grande e retangular, com um corredor comprido delimitado por fileiras de bancos de madeira. Ao que parecia, contornavam a parte superior do salão galerias com mais bancos de madeira. "Vazio demais para ser uma casa e sem graça demais para ser uma igreja".
Alice, por curiosidade e inocência de criança, seguiu para o fundo do salão. No final do corredor, tinha um pupto de madeira, que por não saber o nome do objeto, Alice apelidou de "Mesa Para Ocupados", imaginando que só utilizaria uma mesa daquela que estivesse com tanta pressa que não pudesse contar nem com o tempo de se sentar fosse; para ler, estudar ou comer. Que dirá então conversar! Admirada com aquele espaço imenso, queria descobrir qual tipo de pessoa vivia naquele mundo.
De uma porta discreta na parede direita da grande sala saiu um homem bem vestido, engravatado com ar de imponente e nariz de importância que caminhava como que sobre nuvens. Demorou um pouco para reparar na presença da menina, mas quando a percebeu logo perguntou:
- Que queres?
- Pegar pão - respondeu Alice.
- Aqui não é padaria e hoje não é dia de Ceia. Aliás, mesmo que fosse, para participar da Sagrada Comunhão é necessário que seja membro de nossa comunidad não criança e e batizado nas águas. A meu ver, você não se encaixaria em nenhuma dessas condições.
- Que comunidade? Não vejo ninguém aqui... - indagou a menina.
- Nós nos reunimos apenas aos domingos. - retrucou o homem com pouca atenção.
- Uma comunidade que só se vê uma vez por semana... Estranho né?! O que é "Salada Comunão"?
- Sagrada Comunhão! - corrigiu o homem - É a reunião dos santos da igreja para comer o pão e beber o vinho.
- O que é um santo?
- É quem não comete pecados. - respondeu o homem com um tom "sagrado".
- E quem é que não comete pecados? - insistia a curiosidade de Alice que nada compreendera até então.
- Apenas Jesus não cometeu pecados menina, nunca aprendera nada? - perguntou o homem já impaciente.
- Então só esse Jesus é que come pão e bebe vinho? Lá em casa meus tios fazem sempre...
- Não! - interroumpeu-a severamente o outro agente da conversa - Todas as pessoas da igreja participam da ceia... Desde que sejam da comunidade, não crianças e batizadas nas águas...
- Ai! Muito confuso tudo isso. - reclamou Alice. - Mais prático o ano novo e as festas em minha família, que além de pão tem muita comida, muito doce e todos os meus tios bebem bastante vinho! É muito engraçado e divertido!
- É errado beber bebidas alcoólicas, como é o vinho. Apenas na cerimônia da ceia. - advertiu o homem.
- Não entendo...
- É muito complicado para uma menina da sua idade compreender. O seu mundo ainda é muito simples e sem problemas. Por isso não entende. - explicou o homem.
- Como assim sem problemas? - indignada por ter sido chamada de criança com um tom de ingenuidade. - O meu primo Caio esses dias derrubou todos os meus laços de cabelo dentro da lata de tinta branca! Agora fica difícil combinar minha roupa com outra que não seja branca! Sem contar os meus gatos que brigam todo o dia e a minha irmã mais velha que tem roubado minhas bonecas para me "forçar crescer". São sérios problemas! Como conseguir novos lacionhos se não trabalho? Como fazer meus gatinhos virarem amigos e serem bonzinhos um com o outro? Como conseguir brincar de boneca e ao mesmo tempo crescer? Não são coisas simples, o senhor não sabe como é!
- Sei sim. Sou pastor e aconselho pessoas com problemas iguais ou piores todo dia, minha jovem. - respondeu o homem ressaltando seu nariz de importância.
- Se aconselhar? Aqui é um consultório de piscicólogia? Minha tia é piscicóloga, não sei bem o que é isso, mas sei que no consultório dela um monte de gente vai para se aconselhar... - observou a garotinha.
- Não. Aqui é a casa de Deus, uma igreja. As pessoas vem para adorar a Deus e pedir que Ele cuide dos problemas delas.
- Elas pedem e Deus responde?
- Sim. Não é preciso de mediador nenhum agora que temos Jesus.
- Então para que o senhor aconselha?
- Porque as pessoas vem atrás de ajuda para os problemas.
- Mas elas não vem para pedir isso para Deus e Ele responde?
- É... é que... é necessário bastante fé... e eu... ajudo as pessoas em sua fé. - respondeu o homem agora sem o nariz de importância mas a sobrancelha de incerteza.
- Cada vez esse lugar fica mais confuso... - reclamou novamente Alice.
- Venha, eu vou te mostrar porque apenas palavras e raciocínios não são suficientes para a fé... existem mistérios também... - retornando o homem a um tom de sagrado.
O homem levou Alice para a porta de onde acabara de sair e adentraram num quarto cheio de muletas, cadeiras de roda e algumas fotos.
- Está vendo menina? - perguntou o homem com o ar de imponente.
- Sim. Parece um estoque de hospital! Uma vez tive que usar muleta por um mês quando quebrei a perna...
- Pois essas muletas ai são de pessoas que foram curadas de seus problemas por Deus e deixaram ai.
- Problemas? Mas as muletas ajudam muito! Eu sem elas com a perna quebrada não conseguiria caminhar nem andar, e depois de um mês já estava bem de novo... nem precisei vir aqui. - sorriu a criança.
- Estas são de pessoas que nunca puderam andar ou estavam com graves doenças menina! Coisa séria! Milagre que Deus faz!
- Mas a maioria parece estar nova senhor... Não era melhor ajudar pessoas que precisam destas coisas? Entregar essas coisas num hospital ou algo assim para distribuirem para quem precisa sabe?!
- Não garota, o idela é que ninguém mais usasse coisas! Ai estaria o milagre! - bradou com orgulho o homem.
- Mas se ninguém mais usar, quem precisa não poderá andar! Como ficarão os doentinhos? E eu se quebrar a perna de novo? - refletiu a menina.
- Você não compreende o Poder de Deus!
- E como funciona?
- É simples. Se você é fiel, tem uma vida certinha, segue os Caminhos do Senhor e entrega uma parte do seu dinheiro para Deus todo mês, tudo na vida vai bem e começa a fazer parte do Reino de Deus!
- Ah! Estou começando a entender! Se agente promete fazer parte da comunidade e não sai dela, ai faz o que ela pede, paga o aluguel para o dono do salão que é esse tal de Deus, ele paga as nossas contas e as consultas no médico! O senhor fala bastante por "metáforas" né?! Eu ainda sou novinha para compreender essas linguagens esquisitas, mas sou esperta e consigo decifrar esses enigmas! É que leio bastante. Ah! E sem falar no pão e no vinho (que não pode beber). - exclamou Alice com entusiasmo.
- Menina, acho que já deu o seu tempo aqui! Está já a profanar e insultar a igreja do Senhor! Vá-te embora comprar teu pão na padaria e só volte o dia que for se arrepender dessas idéias e da sua petulância! É pecado dizer o que disse! Vá-te comprar teu pão!
Alice se lembrou que deveria ter comprado pão. Saiu correndo assustada pela cara feia que o homem lhe fizera e principalmente pela cara feia que sua mãe faria quando chegasse muito atrasada em casa. Passou pela porta de vidro, saltou o degrao, dobrou a direita e segui rápido para a padaria. Chegando lá, entrou na fila do pão, suspirou e refletiu: "De todas as minhas aventuras e países que conheci acho que este foi o pior. Não sei se porque este fora real ou porque fora tão imaginário que não compreendera o porque estivera lá. Ou pior, o porque ainda pessoas vão lá."
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