Ficar sozinho e em silêncio é, num primeiro momento, assustador. Silenciar tudo para ouvir-se é muito pior. Esvaziar a mente, congelar os movimentos, deixar a alma livre para se expressar como quiser é o próprio desespero. Pois entramos em contato com aquilo que mantínhamos preso para não espantar os outros. Ouvimos os latidos daquilo que somos e não queríamos ser, os uivos do que tentávamos segurar na coleira, esconder na casinha ao fundo do quintal, para não pular a cerca do coração e invadir as casas vizinhas.
Tenho um companheiro de caminhada que admiro muito e é pastor, que algumas vezes ao pregar, citava uma música de uma banda de rock brasileira (a qual não lembro o nome) que dizia em seu contexto que apenas somos nós mesmos quando estamos sozinhos nos nossos quartos, quando ninguém nos vê. Isso é o que nos assusta, descobrimos quem somos, como é o cão que alimentamos no fundo do nosso quintal. Esse mesmo pastor,conta uma história de um índio que dizia que dentro dele existiam dois cães, um bom e um mal. Todos os dias estes cães brigavam, e vencia aquele que fora melhor alimentado. Este é o problema de ficar em silêncio, ouvimos o rosnar dos cães.
Em alguns textos do blog, dissertei ou expressei meus pensamentos sobre o "mal", "demônios", "Diabo" e afins. Neste, pretendo continuar a linha de pensamento que guiou aqueles. Assistindo um filme uma vez, ouvi um diálogo que me abriu os olhos:
"Você não acredita nos homens?", "Sim, nos homens eu acredito. Só não confio no demônio que existe dentro deles". Se existe algo que me assusta, é o Diabo. Mas não aquele chifrudo, vermelho, com tridente e cara de mal, e sim aquele que se parece muito comigo, aliás, que existe dentro de mim. Aquele do qual sou dono e alimento todos os dias. Se existe alguém que precisa ser "amarrado", esse alguém sou eu. Se existe alguém que precisa ser "expulso", esse alguém sou eu. Não o "eu" inteiro, mas aquele eu que luta comigo, aquele eu que quer a mim e não ao outro. Aquele eu egoísta, que mente para o seu bem, que vive para seu nome.
Lutero "lutava com o Diabo" durante as noites. Dizia-se tentado e perseguido por ele, por isso as noites quando o via, lutava e "vivia em pé de guerra". Lutava consigo mesmo. Era tentado pelo cão que ladrava alto querendo ser solto da coleira e fugir do quintal. E nesse caso, esse cão ladra e morde. Temos um chamado cristão para aprendermos a lidar com esse "eu", com esse cão que existe dentro de cada um. Aprendermos a morrer para nós mesmos, seguir os passos de um Cristo que esvaziou-se de si, viver numa única Lei, o Amor, pensar no outro, ser o outro, sentir a dor do outro e compreender que a vida ganha não é baseada no meu egoísmo mentiroso, no meu Pai da Mentira que me tenta em meu deserto, mas sim aquela que é dada pelo outro, testemunho para o outro, mártir para o outro. Menos de mim e mais de Deus, mais do outro. Hoje não sou mais eu, mas Cristo vive em mim.
Precisamos aprender a sermos livres! A não ouvir mais os latidos e os uivos deste cão insaciável quando ficarmos só e em silêncio, quando nos retirarmos para nossos desertos. Precisamos compreender que para liberdade fomos libertos, para tomarmos nossas atitudes de maneira independente, consciente, humana e não canina. Sermos homens e mulheres humanos, e não apenas animais que vivem influenciados por ladros, uivos e instintos. Sermos conscientes, livres, maduros, capazes de dar os próprios passos e trilhar a carreira que é proposta. Sem medo de nos apresentarmos por inteiro, sermos íntegros, abrirmos nossas casas e mostramos até o nosso quintal.
O meu maior medo não deve ser um terceiro, não deve ser um adversário, mas o meu eu, o meu cão, o meu Diabo. Para onde fugirei de Deus? Seja onde for sempre estarei em suas vistas, e aliás, frente a Deus sempre estou nu, desprotegido, inteiro. Não adianta ocupar a vida para não perceber o silêncio e o aquilo que somos, pois uma hora chega os dias de deserto e os latidos aumentam. A coleira não é forte o suficiente para segurar para todo sempre. Mas preciso aprender a guardar a Palavra em meu coração, preciso aprender a me entregar por inteiro, preciso aprender a me transformar todos os dias, a morrer todos os dias, para de glória em glória ser semelhante a Cristo.
A minha caminhada deve ser menos de mim e mais do outro. Deve ser o amar ao próximo como a mim mesmo. Não fugir de mim, não esconder o que sou, mas entrar em contato com isto, ver, ouvir e reconhecer meus cães, para ser transformado, para aniquilar a mim mesmo, esvaziar este meu eu, e deixar que Cristo viva em mim. Do cão eu sou dono, e preciso decidir se quero no dia mal, no silêncio, no deserto, na noite, ouvir uivos e latidos, ou descansar Nele, entregando meus medos e ansiedades em Suas mãos, trabalhando com parceria e cumplicidade, reconhecendo a necessidade de mudança, silenciando este cão, e ainda que ande pelo Vale da Sombra da Morte, não temerei mal algum, ainda que tudo se cale e eu veja quem sou, não temerei mal algum, ainda que tudo aconteça não temerei mal algum, pois Tu estás comigo. Do cão eu sou dono. Agora, quero ouvi-lo e silenciá-lo? Ou quero escondê-lo e esperar que solte-se da coleira?
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