domingo, 31 de julho de 2011

Num dia perto da hora do almoço

Eu estava lá, em pé. Chegava a hora do almoço, mas poucos preocupavam-se com o que haveriam de comer -se bem que muitos dos presentes mal teriam o que comer. Dos que estavam sentados, muitos viviam apenas de palavras, alimentavam-se com os ouvidos abertos e a boca fechada. O silenciar de suas vozes era doce refeição. Dos que estavam em pé comigo, todos teriam comida em suas casas menos um, que, se saísse vivo daquela hora próxima, seria sortudo se alguém ainda o aceitasse para conversar e compartilhar com ele o alimento das palavras.

Este um de pé que não sabia se reencontraria a mesa de casa e a fartura de ao menos uma companhia, dependia do consentimento de um escritor. Que homem divino! Divinamente inspirado, reescrevia destinos e traçava novas trilhas para os esfomeados. Ao invés de esmolas e migalhas, o escritor esbanjava manjares de sons, letras, sílabas e frases suculentas, apetitosas, desejáveis e com cheiro de fome. Para as constantes horas de necessidade de comida, aquele escritor era boa pedida. Ele estava sentado, com uma perna esticada e outra dobrada enquanto que o tronco apoiava-se em um dos cotovelos. Acabara de escrever um livro cheio de idéias chocantes e carregadas de discussões. No meio das páginas, este escritor dissera que viera mudar as leis e reescrever a história. Nós, que estávamos de pé, fomos tirar prova disso.

Discutíamos e relembrávamos de nossos pais, saudosos e valentes pais, que conduziram as nossas leis e crenças de até então. O que seria de nossa história sem nossos pais? Quem é este homem, mesmo que divinamente inspirado, para reescrever o que nossos pais escreveram? Nossos pais também foram de Deus, também conversaram com Deus e também por Ele foram inspirados! Se um deus escreve algo, quem é deus o suficiente para questioná-lo? Destinos traçados não podem ser mudados! Aquele que estava de pé sem saber se comeria outra vez tinha um destino que nossos pais traçaram junto com Deus: a morte! Se uma lei diz, quem é legal o suficiente para questioná-la? Quem vem promover a desordem? Lei é o destino dos homens escrito por Deus. Ninguém pode ser escritor o suficiente para alterar o destino dos homens.

O escritor sentado no chão passou a escrever. Escrevia como sempre, em páginas de areia. Desenhava suas letras na areia em silêncio. O silêncio, doce refeição para os famintos, alimentava o dedo divinamente inspirado. Bom, "quem não tem pecado que atire a primeira pedra", disse Deus. Só poderia ser Deus! Mais uma lei escrita, mais um destino traçado, mais uma determinação divina estava escrita, só que na areia. Deus estava sentado no chão, olhando para cima, abaixo de nós. E aquele um merecedor de morte, o qual levantáramos o mais alto possível para que todos os que estivessem na Terra vissem-no como exemplo, foi visto pelo Deus dos Céus. E o exemplo que queríamos que viesse do alto, veio do chão. A voz divina que viria como pedra poderosa para acabar com a quebra das leis, veio como silêncio promotor de um texto escrito na areia. Deus, o escritor, escreveu a salvação em páginas de areia.

Os destinos traçados pelos pais, a sina vinda da tradição e a constante perda da hora do almoço, vêm da limitação humana de não conseguir escrever nas areias. Enquanto queremos tábuas, papéis e pedras, Deus escreve em areias. Talvez assim faça para que o Espírito venha como vento e apague as letras, mude os desenhos e traga o silêncio. Quem escreve em areia prefere ficar no chão, viver o inesperado, dividir a terra e sentar a dor daquele que está sentado. Para os que estão no chão, Deus sempre esteve no chão. Para os que preferem ficar de pé, Deus os espera, olha de baixo para cima e convida para um banquete. O problema, é que os que estão de pé já sabem o que comerão em casa, tem certeza da mesa do almoço, não precisam das conversas com Deus e nem do inesperado. Infelizes são os que falham com os homens, pois são por eles tirados do chão e distanciados de Deus. Felizmente, é para estes que Deus olha, que Deus escreve na areia e que a salvação faz sentido. É a estes que o escritor despede em paz e reconvida para vida. Minha única tristeza é não saber se hoje sou fariseu ou prostituta. Queria muito estar sentado no chão.


Gratis i Kristus

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