terça-feira, 14 de junho de 2011

Confissões de uma conversa que tive com um amigo morto

Ouvi Ricardo Quadros Gouvêa dizer que é muito bom que tenhamos alguns amigos mortos. Não que ele quisesse matar alguém ou que eu também o queira, mas é que é muito bom que leiamos livros e conversemos com autores ou personagens que morreram faz um tempo. Gosto muito de pegar metrô, tomar café, quem sabe um chá ou ter uma reuniãozinha antes de dormir com estes falecidos companheiros que não tem a opção de não me querer como companhia. Um desses amigos que muito tem freqüentado minha casa é Jacó, o bom e velho Jacó.

Em nossas conversas Jacó tem confessado muita coisa de seu passado e eu me identificado com suas atitudes e sua dor. A beleza de ter amigos mortos é que eles sempre dizem a mesma coisa, só que nossos ouvidos com o tempo começam a ouvi-las de um jeito diferente. Jacó sempre me disse que fora tão santo quanto eu, mas antes eu achava que era uma bronca, depois que ironizava minha vida e hoje, finalmente, compreendi sua afirmação: é tão homem, tão santo, tão mentiroso e tão lutador quanto eu.

Jacó era o mais novo de sua casa, diferente de mim que sou o mais velho. Mas quem disse que casa é só família? Na igreja nunca fui o primogênito e no futebol alguém sempre me deixou para trás com vontade de puxar-lhe o calcanhar. Também nunca fui muito de enganar meus familiares, como era costume de Jacó, mas sempre enganei muito bem amigos, professores, a mim mesmo, a Deus, ao Diabo... Ter mais de uma cara é comum para quem nasce num mundo cheio de espelhos. E por fim, não fugi de casa, como Jacó fizera, mas morri de medo de todos e refugiei-me em mim mesmo, atrás das sombras da noite, numa longa viagem agonizante e desesperadora de culpa, medo e punição.


No percurso também fiquei muito cansado e qualquer canto servia de cama ou embalava meu sono. Jacó descreveu-me sua noite em Luz, tinha sido um dia exaustivo, não por causa do percurso, mas pelo peso e a gravidade que a culpa trazia. Dizem que cigarro envelhece, mas não sei bem se é o cigarro, mas sim a ansiedade que o fumo alivia e a culpa de saber que ao mesmo tempo em que faz mal, não é tão simples de ser deixado de lado. Desesperado, não usei travesseiro de pedra, mas paredes religiosas, fundações doutrinárias, mantras insuportáveis e qualquer outro aparato de “fé” que mesmo desagradável servisse para reclinar um pouco a cabeça.

Descansei e tive sonhos! Não com escadas que ligam o Céu e a Terra e anjos que sobem e descem mesmo tendo asas, não curto muito esse lance de alucinógenos sabe?! Mas sonhei com um Deus me dizendo que eu era livre, que me acompanharia na jornada, que estava comigo e não arredaria o pé enquanto não cumprisse essa promessa. Um Deus de amor falou comigo. Infelizmente, a culpa e o travesseiro não me deixaram ouvir amor, apenas escutei “Deus”. Abri os olhos e vi tudo escuro. Tive muito medo! E que culpa e travesseiro que nada! Sejamos sinceros, eu é que não queria ser livre nem amado, onde já se viu isso?! Eu merecedor de algo assim? Jamais! E pior, onde já se viu ter um Deus junto comigo e nas mentiras que conto! Jamais! Um Deus que me acompanha, ama e apóia? Deus me livre! É responsabilidade demais para um enganador consciente da desgraça que sou!

Esperei o sol raiar e, assim como Jacó, propus um negócio para Deus: se desse tudo certo, eu conseguisse viajar em paz, enriquecesse, passasse tranqüilo na vida e tivesse garantia de retorno para casa (Deus), além de eleger Deus como meu Deus, daria também o dízimo. Continuei a vida nessa constante luta com Deus, Ele querendo me deixar livre e eu querendo depender da culpa para não ser responsável pelas minhas mentiras.

Aprendi a viver assim: se tudo é garantido e o negócio é feito, eu erro e em seguida peço perdão e bola para frente que no final retorno para casa. Falsa santidade, medíocre crença covarde! Assim como Jacó ainda passei a vida enrolando os outros e ficando profundamente magoado quando enrolavam a mim. Utilizava o nome de Deus em vão. Condenava os outros, “santificava” a mim mesmo. Eu estava certo, pois fizera um pacto com Deus. Negócio é negócio, certo?!

Infeliz infortunado cheio de posses e garantias, tive um dia de enfrentar a vida. Esaú encontraria e talvez mataria Jacó. Eu tinha que crescer e me mataria se alguém também a mim não o fizesse. Prolongar mais um dia de decisão era prorrogar mais uma eternidade de sofrimento. O problema não é o sofrimento, mas não saber viver com ele. E para quem negocia com Deus por medo de amor e de liberdade, que dirá sozinho ter que lidar com o sofrimento.

Jacó retirou-se para um lugar sozinho, viu um homem e pôs-se a lutar. Fiz o mesmo. Jacó me disse que bateu nele, bateu em si, agarrou-o, jogou-se até o sol raiar mais uma vez. Fiz o mesmo. Jacó foi tocado na coxa, eu no coração. Jacó conhecia aquele homem, sabia seu nome e também que Ele sempre esteve ali. Eu também! Jacó mudou de nome, eu mudei de vida. Jacó não saiu ferido da batalha, eu também não. Jacó tornou-se manco, nunca mais andaria como antes. Fiz igualzinho, tornei-me de coração quebrantado e nunca mais viveria sozinho. Jacó mudou o jeito de andar, e nós o jeito de viver.

Em minha última conversa com Jacó, lembramos das experiências que nos fizeram mudar a caminhada. Em nossa última conversa sorrimos pensando nos dias que andamos como todos sempre andaram e quão infeliz foi não aceitar ser aGraciado e assumir o jeito que andamos de verdade. Deus sempre esteve conosco, e no dia que decidimos parar de lutar por ele, contra ele, por nós, contra nós, pelos homens e contra os homens, descobrimos o quanto os homens são amados por Deus. A culpa não faz sentido e muito menos faz sentido andar de modo que agrade a todos.

Jacó começou a andar mancando e todos perceberam a imperfeição. Como andar manco? Está ferido? Não, está salvo, com um andar transformado, um andar que para outros é imperfeito, mas para Jacó é transformação. Eu comecei a ter coração fraco, que para muitos é imperfeito, mas para mim é salvação. Lutei com Cristo e com homens e venci. Não porque ganhei de todos, mas porque perdi aquele travesseiro de pedra que me servia de descanso, porque larguei da negociação que fazia com Deus, porque assumi minhas pernas, entendi minha liberdade, passei a amar e sabendo que antes de tudo, fui amado primeiro. Continuo conversando com Jacó todos os dias, ele continua mancando e eu aprendendo...


Gratis i Kristus

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