terça-feira, 28 de junho de 2011

Carta ao carteiro

Senhor carteiro,

peço-te que leve esse pedaço de texto para fora dos muros de pedra que protegem o quintal e o jardim, que por sinal não são meus, mas fazem parte da minha casa. Casa esta que também não é minha, é de meus pais, homem e mulher intrigantes e esquisitos que mal vêem o dia passar, ou, se vêem, é em algum lugar bem longe de mim, pois quase não os vejo enquanto vejo de dentro de casa o dia passar. Peço-te que entregue essas palavras nesse contexto que descrevo para alguém que familiarmente me reconhecerá, um qualquer um que tenha nascido no mundo e vivido em casa. Não na minha casa, mas cada um em sua casa.

Entro em contato vez por outra com o mundo, mas não gosto de gente, não me sinto seguro. Pessoas me assustam e ao mesmo tempo se fazem necessárias. Sabe, sou apaixonado por uma menina da escola que senta três cadeiras para direita e duas para a frente de mim, numa sala de aula de 47 alunos. Ela é tímida, e eu também. Na verdade, talvez não sejamos tão tímidos assim, mas é que não tenho tempo para falar com ela e muito menos cara de encontrá-la em algum lugar. Na verdade do "na verdade" anterior, eu a encontro todos os dias e nos falamos sim, pois ela é minha vizinha, mas nunca é assunto suficiente para que eu encontre o coração dela e nem para que ela se depare com o meu. Pode ser que já tenhamos visto um o coração do outro, mas de tanto barulho que tem nessa cidade talvez eu não tenha percebido seus batimentos cardíacos e nem ela os meus. Ou então, como ela põe na internet tudo o que acontece na vida dela, não tem mistério naquela alma, que acaba parecendo toda de vidro e o coração também. Consigo ver o que se passa por trás daquele corpo, de tão transparente que a tela do computador o faz. Nada de mistério, nada de segredos. Não me exponho tanto assim na rede, prefiro resguardar-me.

Eu não tenho nenhuma cicatriz, mas não é porque nunca briguei. Vivo discutindo e rasgando o verbo à distância mediado pelo teclado, tenho batalhas muito feias e lutas épicas, mas não ando de bicicleta e acho extremamente chato radicalidade ou academia. Também não sou o obeso que vive de microondas e lap-top. Aliás, é interessantíssimo viver num mundo em que morre gente por obesidade e também por vício de academia. Tanto o excesso de músculos como o de gordura matam, eu acho. Vivo recebendo propagandas de saúde em relação a obesidade e as complicações dos exercícios físicos desregulados. Geração saúde, geração fast-food, vai entender?!

Essa coisa de rotular tudo só confunde a cabeça das formigas perplexas que passam a preferir seguir o curso do que entendê-lo. "Vamos preservar o futuro", dizem sempre que olham para as desgraças do formigueiro, mas nunca pensam o porque da necessidade de preservação da espécie. Querem procriar e inventar próximas gerações na tentativa de manter o formigueiro ativo, mas não estão nem aí para o porque de existir um formigueiro. Mas tudo bem, senhor carteiro, as formigas não se sentirão chateadas pela metáfora, todas elas já estão acostumadas a ouvir essas coisas, inclusive sentem-se parte de um movimento "contra-corrente" dentro do formigueiro, mas nunca percebem que continuam dentro do formigueiro. Os humanos também me perdoarão por chamá-los de insetos, principalmente porque serão poucos os que lerão esta carta. Já não existem muitos humanos para depois do muro dessa casa dos meus pais, e nem tantos para dentro também - os humanos são seres raros, estão em extinção. Na verdade do "na verdade" dentro daquele "na verdade", estão em extinção desde que tomaram consciência...

Mas pouco importa, apenas peço-te que leve este pedaço de texto para fora destes muros de pedra que protegem o quintal e o jardim, para alguém que se importe com segredos, que não se assuste com mistérios, que não seja de vidro, que se machuque e tenha cicatrizes (bem diferente de mim), que não coma muito e nem malhe mais ainda, que prefira uma carta a um combate na internet e que pense no porque de continuarmos a manter o formigueiro. Espero que encontre alguém que leia, senhor carteiro, e se dermos sorte, alguém que responda... Se bem que, imagino que o senhor não vá ler... O senhor é entregador de cartas, não leitor! Droga... Só dei-me conta agora... Mas já foi, e foi tarde! Fazer o que?! Tenha um bom dia senhor carteiro,

Assinado:

Polyergus Rufescens


Gratis i Kristus

5 comentários:

  1. Ola, Estou aqui, sim, existo, e me importo, bom saber que ha alguém la... que se importa também. Bom saber que ha vida la fora..
    Náo como muito, nem malho tanto, não sou forte e nem sou fraca, pretendo voar.. ou .. pretendia voar..mas a idade chega e o tempo nos rouba os sonhos, ou será que não, somos nós que nos saboteamos?.. wherever..
    Ha muitos aqui viu.. que mesmo em silencio, mesmo num silencio profundo de desconhecimento, distancia e ignorancia, estão juntos contigo..
    Voce não esta só..
    O carteiro também esta junto contigo..

    Silvia

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  2. Hehehe ... Muito obrigado carteira Silvia! hehehe

    COntinuemos a caminhada então!


    Um beijo...

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  3. Talvez poucos leiam, isso é fato, menos ainda são os que escrevem e publicam pelo mesmo medo da não compreensão, mas é importante dizer.
    Mas oras, não temos tempo de olhar para si, a ideia é: exposição máxima para tentar se ver pela ótica de outro que nunca te viu (parece contraditório, mas é mais do que isso, é doentio).
    Ocupamos um tempo que não é nosso para viver o mais superficialmente possível. Não me percebo e não faço questão de perceber ninguém: este alguém fora do muro ou dentro de casa.
    Talvez nos sirva de consolo: há muitas cartas ainda, anônimas, como as mais belas cartas o são... Começa assim como um grão de mostarda.

    Cinthia Jardim

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  4. Olha que coisa, somos nós do formigueiro, alôoo!
    Nós formigas somos muito egoístas, talvez por isso chamemos nosso mundo de "nosso". Um "nosso" tão impróprio, afinal, como pode ser de tanta gente? Quem é que sabe...
    Nós formigas somos assim, temos a cabecinha fechada...Tanto é que pra extravasar nosso egoismo criamos a internet...Porque nesse mundo que é menos nosso que o nosso que não é nosso podemos falar e falar e falar...Mesmo que nenhuma formiga escute.

    Muito muito bom o texto!
    Abraços,
    Tais

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